Tratado de Extradição Brasil-US e Zambelli

Introdução

A fuga da Deputada Federal brasileira Carla Zambelli, após condenação (ainda em tramitação) no Supremo Tribunal Federal, aconteceu em fim de Maio, embora conhecida publicamente apenas na primeira semana de Junho. A reação da Procuradoria-Geral da República foi imediata e também de pronto a decisão do STF em decretar a prisão processual da parlamentar brasileira. A fuga seguida da determinação de prisão cautelar suscita na imprensa notícias informativas a respeito do Direito Internacional Privado e Cooperação Penal entre o Brasil e os Estados Unidos.

O problema sobre o destino jurídico da parlamentar se desdobra em dois planos, no do Direito Internacional Privado entre Brasil e Estados Unidos, relativamente à cooperação internacional penal, e no do Direito Internacional Público, onde se descortina a atuação da Justiça Internacional que, como é sabido, é uma jurisdição sobranceira aos Estados envolvidos.

Nesse primeiro momento dos acontecimentos, tem sido colocado em pauta a questão do Direito Internacional Privado Brasil-Estados Unidos. Então, à luz do Direito Internacional Privado faço alguns comentários sobre a disputa Zambelli v. República Federativa do Brasil.

 

Tratado Bilateral de Extradição de 1961

Embora com períodos de “altos e baixos”, Brasil e Estados Unidos têm, na média histórica, bom relacionamento no Continente Americano. Por isso, há entre esses Estados um Tratado de Extradição voltado à Cooperação Penal datado de 1961, unanimemente aprovado pelo Senado Americano. No lado brasileiro, a aprovação do Tratado e sua tradução legislativa oficial se consustanciam no Decreto nº 55.750/63, que promulga o Tratado de Extradição com os Estados Unidos da América e respectivo Protocolo Adicional.

 

Tipicidade dos fatos

 Ao contrário do que se tem propagado, o fato de o Tratado Bilateral de Extradição Brasil-Estados Unidos (TBE-B-EU), em seu Artigo II, não descrever exatamente a conduta típica capitulada na denúncia do Procurador-Geral da República em face da parlamentar brasileira, não é um obstáculo jurídico à aplicação do tratado.

É que aquele tratado não tem natureza de diploma penal internacional, como é o caso das disposições contidas no Estatuto de Roma, cujos artigos 5 a 8 dão uma descrição típica detalhada dos delitos internacionais de competência do Tribunal Penal Internacional, genocídio, crime contra a humanidade, crime de agressão e crime de guerra. Consequentemente, os princípios da reserva legal e da tipicidade não exigem, no caso do tratado de extradição, “descrição típica detalhada”, sendo suficiente uma “descrição de conduta típica genérica”, por exemplo, crime de falsidade.

Ressalta-se que a denúncia apresentada pelo Procurador-Geral se refere ao crime de falso: “(vii) inserção de oito documentos ideologicamente falsos no sistema BNMP; (viii) inserção de três documentos ideologicamente falsos no sistema SEEU; e (ix) inserção de cinco documentos ideologicamente falsos no sistema SAJ”.

O crime de falso é capitulado no § 13 do citado Artigo II, nesses termos jurídicos originais:

The forgery, falsification, theft or destruction of the official acts or public records of the government or public authority, including Courts of Justice, or the uttering or fraudulent use of the same.

Na legislação brasileira, aquele dispositivo recebeu a seguinte tradução oficial do Governo brasileiro:

Falsificação por fabricação ou alteração, furto ou destruição de atos oficiais, livros de registro ou documentos públicos do Govêrno ou da autoridade pública, inclusive órgãos judiciários, ou a emissão ou o uso fraudulento dos mesmos.

Então, à luz do texto legal internacional, verifica-se tipicidade e simetria com as imputações descritas na denúncia do Ministério Público Federal.

A ideia de que o tratado “deve” conter uma figura típica atual,  contemporânea à corrente realidade digital,  não é razoável, à medida que se verifica que os atos imputados à parlamentar se subsumem, em caráter primário, à falsidade documental pública do órgão judiciário brasileiro, sendo secundário o conjunto de especificidades que tornaram essa falsificação possível em uma plataforma digital na rede mundial de computadores.

 

A Evidência de Crime

O tratado bilateral, embora prevendo mera tramitação diplomática para extradição, estatui, no seu Artigo I, uma condição de “evidência de prova”:

“(…) provided that such surrender shall take place only upon such evidence of criminality as, according to the laws of the place where the fugitive or person so charged shall be found, would justify his commitment for trial if the crime or offense had been there committed.”

Na tradução legislativa brasileira, lemos:

“(…) contanto que tal entrega só se efetue à vista de prova de culpa que, de acôrdo com as leis do lugar em que o indivíduo acusado se encontrar e se o crime ou delito aí se tivesse cometido, justificaria a submissão do mesmo a julgamento.”

Consequentemente, quando o canal diplomático do país requisitante (Brasil) envia ao país requisitado (Estados Unidos) a extradição de seu nacional, a “prova do crime” tem de ser enviada e será analisada no país requisitado. Não basta a remessa, portanto, do julgamento do Supremo Tribunal Federal. É necessário o envio das provas também, porque elas serão escrutinadas soberanamente pelo país requisitado, que pode chegar à conclusão de que “não há evidência do crime” e, assim, recusar a extradição.

 

Pena Privativa de Liberdade Acima de Um Ano

Tanto no Código Penal Brasileiro como no Código Federal Americano, a falsidade de documento público pode receber punições privativas de liberdade superior a um ano, no caso do Brasil, artigo 299, Código Penal, e no caso dos Estados Unidos, 18 U.S. Code § 1506 – Theft or alteration of record or process.

 

Crime Político e Anarquia Institucional

A conduta imputada à parlamentar brasileira consistiu na introdução no sistema federal brasileiro locado ao Judiciário de uma informação documental falsa, mandado de prisão contra um Ministro da Suprema Corte. Há, de um lado, a grosseria do falso inapto a enganar ninguém, de um lado, e o eventual delito autônomo de invasão do sistema do Estado. Permeando esses dois lados, a questão que entra na discussão é se o “conjunto” dos fatos típicos poderiam ser concebidos como “crimes políticos”. Ou se seriam crimes comuns com finalidade política, e não crimes propriamente políticos, os quais escapariam do escopo de aplicação do TBE-B-EU.

Com relação à classificação de um crime como político, o tratado traz, no seu Artigo V, 6, b, uma ressalva:

“(…) Criminal acts which constitute clear manifestations of anarchism or envisage the overthrow of the bases of all political organizations will not be classed as political crimes or offenses.”

Na tradução legislativa brasileira, temos:

“(…) os atos delituosos que constituem francas manifestações de anarquismo ou visam à subversão da base de tôda organização política não serão reputados crimes ou delitos políticos;”

Como é corriqueiro em tratados de extradição, cabe à soberania do Estado requisitado, no caso, os Estados Unidos, o julgamento se a imputação delituosa é ou não de natureza política.

 

Extradição Obrigatória (Artigo VII)

Embora, como se vê, existam mecanismos jurídicos de interpretação legal que podem fundamentar, tecnicamente, a recusa da extradição, a extradição do nacional do país requisitante, caso da parlamentar brasileira, não pode ser negada com base política.

 

Prisão Preventiva por Cooperação Penal pelos Canais Diplomáticos

 O Artigo VIII possibilita que o Brasil solicite a prisão preventiva da parlamentar. requisição de extradição da parlamentar tramita do Brasil para os Estados Unidos pelos canais diplomáticos.

Essa prisão pode ser solicitada com muita rapidez e facilidade pelos canais diplomáticos.

 

Canais Diplomáticos e Acesso à Justiça Doméstica do Estado Requisitado pelo Extraditando

O Artigo XI do tratado assegura que a extradição é examinada à luz da legislação do Estados requisitado, no caso, os Estados Unidos, a qual também se sujeita ao julgamento das autoridades judiciárias locais, a pedido do extraditado. Nesse caso, a própria manutenção ou revogação da prisão preventiva será judicialmente apreciada a pedido do extraditando.

 

Proibição de Outros Processos Continuarem

O Artigo XXI traz uma determinação relevante:

“(…) Article XXI A person extradited by virtue of the present Treaty may not be tried or punished by the requesting State for any crime or offense committed prior to the request for his extradition, other than that which gave rise to the request (…)”

Na tradução legal brasileira, temos:

“ARTIGO XXI

O indivíduo, extraditado em virtude dêste Tratado, não será julgado ou punido pelo Estado requerente por nenhum crime ou delito, cometido anteriormente ao pedido de sua extradição, que não seja o que deu lugar ao pedido, nem poderá ser reextraditado pelo Estado requerente para terceiro país que o reclame, salvo se nisso convier o Estado requerido, ou se o extraditado, pôsto em liberdade no Estado requerente, permanecer, voluntàriamente, no Estado por mais de 30 dias, contados da data em que tiver sido solto. Ao ser pôsto em liberdade, o interessado deverá ser informado das conseqüências a que o exporia sua permanência no território do Estado requerente.”

Então, se a parlamentar for extraditada, após uma possível longa batalha judicial, ela não poderá mais ser processada pelos delitos anteriores à eventual concessão de extradição; no caso em exame, Zambelli terá o processo pelos crimes de porte ilegal de arma de fogo e constrangimento ilegal com emprego de arma de fogo (e eventuais outros cometidos antes da extradição) arquivados.  

 

Questão da Permanência Legal nos Estados Unidos

No caso da parlamentar brasileira, existe uma questão concorrente. Ela não pode estar nos Estados Unidos por muito tempo sem uma justificativa legal. Logo, sujeita-se à deportação, que é uma expulsão do país por outro motivo, sem qualquer ligação com a extradição.

 

Asilo Político

Paralelamente, existe a possibilidade de a parlamentar brasileira demandar asilo político, o que constitui uma segunda vertente de solução política de seu problema com a República Federativa do Brasil. Porém, a questão aqui já não é mais de Direito Internacional Privado, mas de Direito Internacional Público.

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