Posts relacionados: A Inteligência Artificial escrevendo sobre Justiça Internacional | Caso Rainbow Warrior: Uma Análise de Disputas Internacionais – I
Introdução
Semelhanças entre Justiça Nacional e Justiça Internacional
Dificuldades no Estudo de Definição Jurídica de Justiça
Etimologia da Palavra Justiça
Diferença primária entre Justiça Nacional e Justiça Internacional: O critério orgânico
Disputa: Pressuposto da jurisdição contenciosa, não da Justiça Internacional
Introdução
Pelo método científico, o estudo das diferenças das categorias lógicas de uma ciência leva ao seu aperfeiçoamento. Em Direito Internacional, é comum a problematização da diferença entre Justiça Nacional e Internacional, já que ambas são muito semelhantes; se fossem muito diferentes, a problematização seria em torno de eventuais semelhanças.
Semelhanças entre Justiça Nacional e Justiça Internacional
A Justiça sobre a qual discutimos é a ideia mais concreta de Justiça, em termos processuais e não como um capítulo da filosofia do direito. Atente-se ainda para o fato que Justiça pode ser concebida subjetivamente como os órgãos que exercem a jurisdição ou objetivamente como a atividade jurisdicional por aqueles órgãos exercida.
Conceitualmente, é finalística a maior semelhança entre as concepções de Justiça Nacional e Justiça Internacional:
Justiça Nacional e Internacional são orgãos ou instituições jurídicas criadas para a solução de conflitos, os quais decorrem naturalmente da interrelação das pessoas, com a finalidade de que as disputas sejam solucionadas sem violência, sem agressão e imparcialmente, sob critérios pré-estabelecidos de independência, imparcialidade e legalidade, de modo que o efeito colateral da socialização humana seja solvido sem solução de continuidade da necessária paz, segurança e progresso inerentes à coalisão necessária entre as pessoas.
Dificuldades no estudo de definição jurídica de Justiça
Ao se colocar no centro de uma problematização a ideia de Justiça, notadamente, quanto à sua distinção entre Justiça Nacional e Internacional, convém relembrar uma pertinente ponderação em uma frase de HANS KELSEN1 (tradução em Português):
“The problem of International Justice is only a special instance of the general problem of Justice, a problem which has occupied the human mind as has no other. Since men have
thought at all, they have put the question: What is Just? And although the most illustrious thinkers, including Plato and Kant, sought an objective answer, the question of the nature of Justice is far from being answered today as it ever was”
A carga semântica e a etimologia da palavra “Justiça” oferecem complicadores culturais que tornam o problema de sua definição solucionável apenas por uma equação que envolva múltiplas variantes, ou seja, vários critérios, e não apenas um que sirva de epicentro a um conceito geral. Aqui, deve ser dito que é tormentoso o estudo das palavras jurídicas. Os termos legais ocidentais que conhecemos foram herdados do direito romano antigo, de onde viajaram para o presente através de sucessivas transformações que não deixam rastros muito claros no areal dos séculos. Ademais, os termos jurídicos, como se encontram hoje nos sistemas legais ocidentais, apresentam-se com contornos de uma personalidade própria, de modo que, não raro, querer conhecê-los pela sua origem romana para explicá-los sobre a prática atual seria como se determinar o Vietnã conversando com um idoso vietnamita que viveu seus 75 anos na França, sem nunca ter sequer pisado no país natal! Afora a aparência envelhecida da nação sul-asiática, ele será no conteúdo um francês!
Etimologia da Palavra Justiça
A palavra justiça deriva do adjetivo latino IUSTUS, significando aquilo que é o certo de acordo com a o Direito. Quando se adiciona o sufixo “tia” a IUSTUS, surge a palavra latina designativa de justiça, ou seja, a IUSTITIA. Ocorre, portanto, uma substantivação feminina, significando RETIDÃO e INTEGRIDADE, vale dizer:
“A qualidade de ser moralmente correto ou a correção em sim mesmo”.
Por conclusão, nessa abordagem do espectro ético do denso conceito de Justiça, verifica-se mais essa importante semelhança entre Justiça Nacional e Justiça Internacional: Ambas encarnam a sacrossanta qualidade da integridade no pressuposto da sua ratio essendi, que é a solução de um conflito de acordo com a inviolável honestidade na aplicação da lei, visto que o Direito é instrumento odioso se manejado por mãos desonestas.
De que vale a boa lei se ela é corrompida por quem a aplica?
Daí, a grave exigência de elevado saber jurídico e de irrepreensível conduta moral que, tanto na organização das Justiças Nacionais como também das Justiças Internacionais, é feita aos que se predispõem à dignidade de ser um julgador do conflito alheio. Vem a calhar a passagem, perdida na memória da história, de um soberano que, na sua corte de juízes, mantinha revestida algumas cadeiras com a pele de capitulados julgadores corruptos, para bem ciência de todos de como ele tratava a desonestidade da Justiça.
Diferença primária entre Justiça Nacional e Justiça Internacional: O critério orgânico
Quanto à diferença entre Justiça Nacional e Justiça Internacional, perfila-se uma lista de diferenças… Nenhuma infalível. Não caberia nos estritos limites de um blog discuti-las.
O critério orgânico me parece razoável.
Partindo-se do pressuposto comum de que ambas são instituições de estado de direito, quer no âmbito soberano do sistema legal interno dos Estados, quer no plano em que os Estados se relacionam entre si em grau de igualdade como potências, renunciando parcialmente a soberania a favor da concretização das aspirações de paz, segurança e desenvolvimento entre as nações, a Justiça Nacional é um órgão interno (ou de soberania endógena) da estrutura dos Estados, ao passo que a Justiça Internacional é um órgão de uma estrutura externa (ou de soberania exógena), ou seja, fora dos sistemas internos dos Estados. Ou seja, a estrutura da entidade judicial é que nos explica se estamos diante de uma entidade judicial nacional ou internacional.
Senão vejamos.
Certa tarde em Haia, em uma loja de antiguidade, na esquina da avenida Denneweg, passeando com minha peluda amiga Lisa Maria, abordou-me, surpresa, uma mulher: “Doutor? Não está no Tribunal Internacional de Haia?”
Perplexo, tinha certeza de que o Tribunal Internacional de Haia não estava reunido, mas para me provar o contrário, a vizinha me mostrou no celular o que acontecia:
A Corte Distrital de Haia estava julgando os responsáveis pelo abatimento do voo da Malásia e a imprensa, de fato, referia-se àquele tribunal como sendo internacional.
A dona da loja não estava certa, mas o fato é que, realmente, o Juiz do Distrito de Haia tinha sido incumbido por uma convenção internacional entre o Reino das Terras Baixas e o da Ucrânia para julgar os responsáveis pela destruição do voo MH17, e aquela convenção fora resultado da impossibilidade do Conselho de Segurança da ONU criar um Tribunal Internacional Penal ad hoc2, no modelo dos Tribunais da Antiga Iugoslávia ou de Rwanda, ou força da qual agia com poderes de uma corte internacional. Ou seja, a Corte Distrital de Haia estava aplicando o direito internacional e exercendo um julgamento supra-national, nas Terras Baixas, sobre três russos e um ucraniano pelo que tinha acontecido em Donetsk, próximo à Rússia…
Nada obstante, o que aquela Corte Distrital fazia era o exercício de cooperação internacional penal, do que resultava uma jurisdição universal, e não internacional propriamente dita. São diferentes jurisdição universal e jurisdição internacional. Logo, aplicar o direito internacional como aquela corte local fazia não a transformava em um órgão da Justiça Internacional. Então, o que caracteriza a Justiça Internacional subjetivamente, isto é, o que faz com que um órgão ou entidade seja de Justiça Internacional é a sua organização. Sendo a Corte de Haia um tribunal do Estado do Reino das Terras Baixas, pouco importa suas atribuições internacionais, ela é nacional.
A Justiça Nacional é um órgão de um Estado; a Justiça Internacional é um órgão de uma organização que, por não estar na estrutura de nenhum Estado, mas pelos Estados formada (tribunais internacionais intergovernamentais) ou respeitada (tribunais internacionais comerciais), leva o designativo de internacional. A distinção pelo critério “orgânico”, pois, é o primeiro e o mais elementar traço distintivo entre a Justiça Nacional e a Internacional.
Observada de fora e não muito de perto, há certas entidades internacionais complexas que se estruturam tripartitemente, como se fossem um Estado de direito no nível internacional, com órgãos legislativos, administrativos e judiciais. Por exemplo, a Organização das Nações Unidas. A Assembleia Geral tem um papel parlamentar (Poder Legislativo); o Secretário-Geral e o Conselho de Segurança exercem funções de Poder Executivo (Chefe de Estado e Chefe de Governo), enquanto a Corte Internacional de Justiça se enquadra entre eles como o Poder Judiciário.
Disputa: Pressuposto da jurisdição contenciosa, não da Justiça Internacional
Enfim, a disputa não é um elemento de maior importância para se conceituar Justiça Internacional, pois esse órgão tem atividade aconselhatória, quando não existe, necessariamente, um conflito de interesses concreto a ser resolvido.
Consequentemente, como já decidiu a Corte Permanente de Justiça Internacional no caso Mavrommatis, a dispute é a condição para que exista jurisdição contenciosa.
__________________________
1. Kelsen, Hans, and John H. Herz. “ESSENTIAL CONDITIONS OF INTERNATIONAL JUSTICE.” Proceedings of the American Society of International Law at Its Annual Meeting (1921-1969), vol. 35, 1941, pp. 70–98. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/25657047. Accessed 23 Oct. 2022
2. Sluiter G. Ad hoc international criminal tribunals (Yugoslavia, Rwanda, Sierra Leone). In: Schabas WA, ed. The Cambridge Companion to International Criminal Law. Cambridge Companions to Law. Cambridge University Press; 2016:117-136.