Caso Rainbow Warrior: Uma Análise de Disputas Internacionais

Internacionalidade da Disputa como Objeto da Justiça Internacional: O que é disputa internacional?


Introdução

A concepção de Justiça Internacional está ligada ao conceito de disputa internacional, embora o conceito de disputa não seja intrínseco à sua definição, porque nem sempre é contenciosa a atividade jurisdicional internacional, que pode ser consultiva.

Quando iniciei a mestrado em Justiça Internacional na Universidade de Londres, o primeiro curso modular, Direito e Política das Cortes e Tribunais Internacionais, não teve um capítulo em que a Justiça Internacional fosse abordada holisticamente. A natural tendência de comparar o direito e a justiça doméstica com o direito internacional e a sua justiça torna tudo mais difícil. O Direito e, consequentemente, a Justiça é uma só, de modo que a diferença entre o Direito dos Estados (Municipal ou Doméstico) e o Direito Internacional é de “mero movimento da força soberana dos Estados”.

No Direito Doméstico, os Estados exercem a soberania centrípeta formando o direito para dentro do Estado, centralizadamente, ao passo que o Direito Internacional é consequência da força soberana dos Estados para fora do seu território, apontando para as instituições internacionais.

Apreensão apropriada do conceito de Justiça Internacional depende, preliminarmente, do entendimento de disputa internacional, já que Justiça Internacional tem por objeto, de regra, a disputa internacional; porém, como veremos, nem toda disputa internacional é objeto da Justiça Internacional, podendo ser adjudicada por cortes domésticas. Lembre-se do caso do Voo MH17, que foi julgado por uma Corte de Distrital de Haia, portanto, um tribunal doméstico das Terras Baixas, mediante um acordo internacional com a Ucrânia!

O estudo da disputa, portanto, revela que disputa internacional e julgamento internacional (jurisdição internacional) não são conceitos sincrônicos. A Justiça Doméstica e a Justiça Internacional compartilham do julgamento das disputas internacionais (que lhes é um objeto comum); contudo, a Justiça Internacional, sendo mais estrita, não tem jurisdição sobre as disputas domésticas, apenas sobre as disputas internacionais. Mas, mesmo nesse ponto, a relatividade do Direito Internacional desafia a lógica do Direito Romano e suas fórmulas que estão por trás do pensamento jurídico Ocidental. É que uma disputa doméstica poderá ser uma disputa internacional, por exemplo, infração a direitos humanos. Recentemente, houve um caso muito interessante em que a Corte Europeia de Direitos Humanos (portanto, Justiça Internacional), julgou que o Estado Português devia pagar uma indenização moral a uma certa mulher portuguesa porque, contrariando preceitos elementares de humanidade, a Justiça Doméstica Portuguesa recusou nomeá-la curadora de sua velha e idosa mãe. Logo, temos aí um caso evidente de Justiça Doméstica que virou disputa internacional.

Enfim, o objetivo do post é, pela análise do clássico caso do navio Warrior Rainbow, expor a complexidade dos conceitos de Justiça Internacional e a sua relação “prá lá” de ambígua com a Justiça Doméstica, sem prejuízo de serem diferentes, mas diferentes como irmãs siamesas!

Disputa (ou Conflito de Interesses). Litígio

Muito cuidado com os tradutores de internet e Inteligência Artificial. Em termos simples, a disputa é, coerentemente com sua origem latina, uma ruptura da concordância sobre alguma coisa a respeito da qual não havia controvérsia. Na verdade, não existe diferença entre disputa (de largo uso no direito internacional) com conflito de interesses (mais ao gosto da doutrina processual nacional), reservado o termo litígio para se referir, especificamente, à disputa já submetida à adjudicação judicial ou arbitral. 

Assim, em termos de Direito Internacional, disputa é um conflito que está na fase pré-adjudicatória, não foi submetida ainda à jurisdição judicial ou arbitral, ao passo que litígio é a disputa submetida àquelas cortes. Conflito de interesses é neutro. Acontece que a tradução comum da internet equipara dispute com litigation e, na interpretação de textos legais, disputa e litígio representam fases distintas e, assim, levam a interpretações diferentes do sentido da lei internacional!

Elementos da Disputa Legal

Não é qualquer disputa entre Estados ou entre aqueles e os particulares (ou entre os particulares, no caso das disputas comerciais) que pode ser submetida às Cortes Internacionais. A disputa tem que ser legal, no sentido de justiciabilidade dela. A disputa pressupõe, portanto, que a submissão dela está de acordo com os requisitos do tratado em que se funda e nos princípios internacionais de direito.

Uma leitura de justiciabilidade à luz, por exemplo, do Tratado Geral de Arbitragem Inter-Americana pode ser lido no excelente artigo “Problems Raised by the General Treaty of Inter-American Arbitration”. Também excepcional abordagem de justiciabilidade pode ser consultada no magnífico paper de THE MOSAIC OF INTERNATIONAL DISPUTE SETTLEMENT PROCEDURES: COMPLEMENTARY OR CONTRADICTORY? (by J.G. Merrills). 

A justiciabilidade, portanto, como pressuposto do conceito de disputa legal (não condição interna do conceito) relaciona-se também com as objeções preliminares à jurisdição contenciosa. Nesse aspecto mais processual da justiciabilidade, confira-se, p. 311, em VERIFICATION OF JURISDICTION AND ADMISSIBILITY: PRELIMINARY OBJECTIONS, na obra Internacional Law,  de Malcolm D. Evans.

Ainda, em Case Concerning Application of the International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination, (Georgia v. Russian Federation), caso nº 140, no julgamento de objeções preliminares de 1/4/2011, a Corte Internacional de Justiça nos dá uma aula sobre disputa e objeções.

Estrutura da Disputa

Se a disputa tivesse uma forma, seria triangular isósceles, no qual estão, no mínimo duas pessoas (naturais ou jurídicas, governamentais, mistas ou puramente privadas) ocupando posições na sua base e que se vinculam pela divergência sobre algum bem (material ou não), que o ocupa o vértice. Daí porque se dividir o conceito de disputa em três elementos: O subjetivo (os sujeitos que divergem), o objetivo (o objeto da divergência) e o jurídico (vínculo da divergência).

Diante da ocorrência de uma disputa, ou conflito de interesses, espera-se que a paz seja restabelecida através da autocomposição, ou seja, que as próprias partes cheguem a um acordo e passem, assim, a ter concordância sobre o objeto da disputa, qualquer que seja ele, de modo que o vínculo da divergência seja dissolvido por aquela autocomposição, que pode se dar uma por renúncia, aceitação, resignação, submissão, transação ou qualquer outro método pacífico e admitido pelo direito.

Em Direito Internacional, a disputa, para ser submetida à Justiça Internacional, depende de um tratado ou convenção, excepcionamente, de uma resolução do Conselho de Segurança da ONU e, historicamente, depende da subjugação pela guerra, caso dos tribunais militares internacionais de Nuremberg e do Extremo Oriente. Sobre a questão de instrumentos constituintes de tribunais internacionais: “Defining International Justice: Defying the States´ Practice in International Law”.

Fases da Submissão Amigável e da Adjudicação

A permanência do vínculo da divergência em si mesmo não é um problema. A disputa só requer atenção se ela se tensiona, evoluindo para o estágio da ameaça de agressão, assim entendida toda e qualquer forma de imposição pela força de uma solução de conflito entre as partes conflitantes. Ou seja, a disputa se agrava e se aproxima de um ponto em que os envolvidos podem entrar em um confronto. Nesse momento, entram em ação os mecanismos legais de contenção para manutenção da paz, que trilham para a fase da submissão amigável, isto é, a disputa é submetida a um meio negociado de solução com a intervenção amigável de um terceiro (mediação, por exemplo) ou, então, segue-se para a fase da resolução por adjudicação, que pode ser alternativa à submissão amigável ou subsequente, caso aquela falhe.

Ora, no plano do direito internacional, aquela submissão amigável corresponde, na disputa entre Estados, aos canais diplomáticos que estabelecem a mediação, a inquirição, a conciliação e os bons ofícios, entre outros possíveis, conforme o artigo 33 (1), da Carta de São Francisco de 1945.

 

 A adjudicação é a solução da disputa mediante resolução por decisão de um terceiro (adjudicador), que pode ser uma Corte ou Tribunal Judicial ou Arbitral. Aqui, adjudicação é referida, portanto, em termos genéricos, abrangendo, então, os métodos de solução impostos aos disputadores, que são obrigados a aceitar a decisão resolutória do conflito, desde que, previamente, tenha consentido mediante a adesão a um tratado ou convenção de solução pacífica de disputas por adjudicação, ou concordado com um acordo especial de adjudicação, conhecido como “compromisso”.

Contudo, no direito internacional, a imposição da adjudicação depende do consentimento dos disputantes (fig. acima) não podendo ser imposta, salvo raríssimas situações em que Tribunais Penais são instituídos por Resolução do Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, o Tribunal Penal para a Antiga Iugoslávia.

No plano do direito internacional, a adjudicação (julgamento da disputa por um tribunal ou corte internacional) depende da preexistência de um “contrato” ou “acordo” pelo qual os disputantes aceitam ou consentem com a jurisdição como método de resolução obrigatória da disputa, ou seja, de um acordo, tratado ou convenção, de modo que o poder jurisdicional internacional decorre da vontade expressa pelo “pacta sunt servanda”1, enquanto a adjudicação nos sistemas judiciários domésticos do Estado repousa no próprio poder soberano do Estado sobre seus nacionais, prescindindo da anuência destes para se impor. Então, o princípio da santidade dos acordos internacionais é de onde a adjudicação tira a sua força. No plano do Direito Internacional, na adjudicação (julgamento ou jurisdição das disputas) a soberania2 3 4(princípio da jurisdição doméstica) é substituída pelo consentimento (princípio da jurisdição internacional).

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Internacionalidade da Disputa

O conceito de disputa até aqui discutido é neutro, i.e., válido para a ideia de jurisdição/adjudicação doméstica e jurisdição/adjudicação internacional indiferentemente. Todavia, é necessário se conceituar a internacionalidade da disputa que a estrema da disputa nacional no âmbito do direito doméstico e a caracteriza como objeto da Justiça Internacional.

O que caracteriza uma disputa internacional? Serem os disputantes de diferentes nacionalidades?

Analisemos a internacionalidade em face, primeiramente, do caso Rainbow Warrior (entre Nova Zelândia e França), mas que também envolveu os interesses da entidade internacional privada Greenpeace. No sítio dessa entidade há informações relevantes de interesse.

O Rainbow Warrior Case

Em 10 de Julho de 1985, agentes franceses entraram ilegalmente na Nova Zelândia e explodiram, por ordem do Governo francês, uma embarcação, o Rainbow Warrior, operada pelo grupo ativista ambiental Greenpeace, que se encontrava atracada no Porto de Auckland. Além da destruição da embarcação, o atentado causou a morte do fotógrafo português Fernando Pereira.

Antes que os agentes secretos franceses pudessem fugir, foram presos pelas autoridades locais e identificados, Major Mafart e Capitão Prieur.

O Governo francês admitiu a missão oficial de seus agentes.

Estava formado o escândalo no centro do qual emergiam duas disputas no primeiro plano e uma terceira no plano de fundo:

(a) Nova Zelândia e França;

(b) Nova Zelândia e Major Mafart e Capitão Prieur e

(c) organização Greenpeace e França.

As três disputas têm por objeto as condutas invasivas dos agentes franceses no território neozelandês e os danos pessoais, materiais e morais consequentes da explosão do Rainbow Warrior. Ou seja, os fatos são os mesmos. Mas, como veremos, a qualificação jurídica deles muda à medida que são analisados por diferentes ângulos.

As disputas (a), (b) e (c) têm natureza internacional?

(a) Nova Zelândia e França

Na disputa arbitral entre Nova Zelândia e França, tem-se uma disputa internacional, porque se trata de soberanias em pé de conflito, cuja solução se dá pelo direito internacional público e por um órgão jurisdicional arbitral internacional. Nessa primeira disputa, portanto, todos os elementos da estrutura da disputa são internacionais.

Essa primeira disputa teve por objeto a reparação moral e material da Nova Zelândia.

(b) Nova Zelândia e Major Mafart e Capitão Prieur

Na ação penal do Estado Neozelandês contra os servidores públicos militares franceses, notamos que a disputa apresenta um polo passivo internacional, caracterizado pela presença de estrangeiros franceses no território da Nova Zelândia. O direito aplicado é o doméstico da Nova Zelândia.

Essa disputa não é internacional, porque o órgão judicante não é internacional, mas pertence à estrutura soberana da Nova Zelândia, estando, portanto, sujeita àquele Estado.

Essa segunda disputa teve por objeto a pretensão do Governo da Nova Zelândia de que os agentes franceses fossem penalmente punidos.

(c) organização Greenpeace e França

Nessa terceira disputa, que teve por objeto a reparação pelos danos sofridos pelo Greenpeace, a disputa traz um sujeito internacional, a França, e um sujeito sem personalidade jurídica de direito internacional, a organização Greenpeace.

Note-se que a condição de sujeito de direito internacional das NGO é uma tendência, mas ainda não é aceita. Portanto, é mista a disputa sob o aspecto subjetivo, tal qual a primeira disputa, de modo que há internacionalidade subjetiva. Todavia, o que torna a terceira disputa internacional é o fato de que o órgão julgador dela foi um tribunal arbitral em Geneva.

Conclusão

O elemento que torna uma disputa internacional não é descritivo da disputa, porque dela não participa, mas a adjudica, ou seja, a natureza internacional do órgão julgador.

A presença de elementos internacionais não são capazes de fazer com que a disputa seja objeto de direito internacional e, portanto, da Justiça Internacional.

Como mencionado alhures, no caso da filha portuguesa que não foi designada para ser a curadora da idosa mãe, preterida pela lei portuguesas que, na situação concreta, privilegiava para a função o filho primogênito (essa norma civil hoje está revogada), mesmo contra a expressa vontade da mãe, tem todos os aspectos de uma demanda totalmente nacional. Todavia, foi levada para a Corte Internacional de Direitos Humanos (da Europa). Portanto, os mesmos fatos puderam ser objeto de, agora sim, uma disputa internacional, pois da disputa e de sua nova perspectiva (violação dos direitos humanos), um órgão judicial internacional passou a exercer julgamento.

Outro exemplo elucidativo está no julgamento da derrubada do Voo da Malásia, o qual foi atribuído a um Juiz Distrital do Reino das Terras Baixas.

Nessa situação, a disputa tem a mesma configuração da disputa do caso Rainbow Warrior aqui analisado, item de disputa (b).

Houve elementos de internacionalidade no julgamento da Corte Distrital de Haia.

De um lado, estava o Estado do Reino das Terras Baixas e, do outro lado, cidadãos russos e um ucraniano.

Porém, o órgão julgador não era internacional, de modo que a disputa tem aspectos de internacionalidade, mas não se configura, estritamente, como uma disputa internacional, porque não foi julgada por uma entidade internacional.


  1. Uma leitura adicional sobre a “santidade dos contratos” ou “pacta sunt servanda” no Direito Internacional, com abordagem mais filosófica: Wehberg, Hans. “Pacta Sunt Servanda.” The American Journal of International Law, vol. 53, no. 4, 1959, pp. 775–86. JSTOR, https://doi.org/10.2307/2195750. Accessed 29 June 2024. ↩︎
  2. Para uma leitura sobre a concepção filosófica do direito sobre soberania: Maritain, Jacques. “The Concept of Sovereignty.” The American Political Science Review, vol. 44, no. 2, 1950, pp. 343–57. JSTOR, https://doi.org/10.2307/1950275. Accessed 29 June 2024. ↩︎
  3. Nessa pesquisa, Jack Goldsmith faz uma abordagem mais positiva de Soberania e a modificação de sua concepção após a Segunda Guerra Mundial: Goldsmith, Jack. “Sovereignty, International Relations Theory, and International Law.” Stanford Law Review, vol. 52, no. 4, 2000, pp. 959–86. JSTOR, https://doi.org/10.2307/1229436. Accessed 29 June 2024. ↩︎
  4. Anél Ferreira-Snyman faz uma abordagem da Soberania como um Poder que tem se transformado para dar lugar a um direito de ordem mundial, que surge, justamente, pela redução da força ou do espectro da autoridade clássica do Estado: Ferreira-Snyman, Anél. “Sovereignty and the Changing Nature of Public International Law: Towards a World Law?” The Comparative and International Law Journal of Southern Africa, vol. 40, no. 3, 2007, pp. 395–424. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/23252645. Accessed 29 June 2024. ↩︎
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