A Inteligência Artificial escrevendo sobre Justiça Internacional

O emprego da inteligência artificial para pesquisas é uma realidade definitiva como instrumento de estudo nas redes. A capacidade de raciocinar de seus algoritmos, no entanto, não se estende ao Juízo crítico que, aparentemente, continua privativo dos neurônios humanos. O uso da IA tem uma face oculta ainda pouco conhecida, mas o que já sabemos de seu aspecto mais exposto é que ela é falha e tende a replicar os erros que lhe são informados, justamente, porque não tem juízo crítico. 

No campo da pesquisa de assuntos mais novos, pouco difundidos, a IA reproduz conteúdo informativos que refletem o desconhecimento geral das pessoas que produzem conteúdo na rede mundial de computadores.

É o caso da Justiça Internacional.

Em uma pesquisa simples, questionamos à Inteligência Artificial:

“Qual a diferença entre Justiça Nacional e Justiça Internacional?”

Obtivemos as seguintes respostas:

Todos os itens estão incorretos ou são insatisfatórios. Após uma breve análise, concluímos que a resposta alcance no máximo 3 em uma graduação de 0 a 10. 

Vejamos.

O âmbito da Justiça Nacional se baseia, segundo a resposta, nos critérios nacional e interno. Embora sejam critérios relativamente corretos para definir Justiça Nacional, são inapropriados para distingui-la de Justiça Internacional. Lembre-se: Foi questionada a diferença entre Justiça Nacional e Justiça Internacional, não o conceito de uma e de outra

Em  sua resposta, a IA não considera que a Justiça Nacional pode exercer jurisdição universal. Dessa maneira, as Justiças dos Estados podem conhecer e julgar fatos praticados no exterior, cometidos por estrangeiros e, mediante cooperação internacional, executar suas ordens. Por exemplo, uma decisão da Justiça Suíça recentemente condenou um ex-ministro gambiano por crimes contra a humanidade.

Observe: Os fatos aconteceram em Gâmbia e foram realizados por um gambiano. Então, mesmo a definição de Justiça Nacional pela IA não está muito boa. O nosso blog tem diversos artigos sobre Jurisdição Universal e Cooperação Penal, que podem ser consultados por buscas, por exemplo: A Justiça Federal Brasileira “surfando” na onda da Justiça Universal, O Brasil Deveria se Retirar do Tribunal Internacional Penal, A Prisão Judicial de Líderes Mundiais, Universal Jurisdiction and International Jurisdiction, Justiça Universal e a Prisão de Assad.

Embora não sejamos um conhecedor de Inteligência Artificial, parece-nos que esse mecanismo estará, por sua própria natureza BINÁRIA de raciocinar, limitado a pensar com toda a razão nos limites bilaterais de uma realidade lógica cuja mecânica tem apenas dois lados.

Muito provavelmente, a Inteligência Artificial é o estado da arte humana no macro mundo físico onde impera a terceira Lei de Newton, “onde as coisas ou são isso ou são aquilo e se são isso não podem ser aquilo”.

Por muitos anos, o Positivismo Jurídico se esforçou para que o Direito pudesse refletir, na pureza de seus dogmas, a lógica binária contida nas ciências naturais e, em particular, na infalibilidade matemática. Hans Kelsen, talvez, seja o expoente dessa corrente da mais pura lógica jurídica baseadas em pressupostos de sua Teoria Pura do Direito.

Mas acontece que, desde o princípio do Século XX, com os avanços das descobertas da Ciência Quântica, viu-se que a mecânica newtoniana não se aplica à dinâmica das partículas de modo que, particularmente naquele mundo, vale a lei da relatividade e, portanto, os acontecimentos são “prováveis”!

Não existe no mundo das partículas uma lei de absolutismo binário… Consequentemente, a lógica racional não pode mais se amparar na concepção 1-2-1-2-1-2-2-1-2-1… Precisa incluir o 3!

O Direito Internacional, especialmente, o Direito Internacional Privado é formado por princípios e conceitos que colorem o direito de tal modo que desafiam a lógica convencional (newtoniana) de que “se uma categoria jurídica é 1, ela não pode ser 2; e se ela for 2, não será 1”. Existem tonalidades entre o “preto” e o “branco”.

Ou seja, a maçã que cai da árvore bem na direção da cabeça de Newton pode (ou não) acertar a sua cabeça. Depende. Alguém poderia estar ao lado e interferir naquele trajeto e, assim, a lógica daquela ordem de ideias é rompida.

Por isso, quando se questionou à Inteligência Artificial sobre a diferença entre (1) Justiça Nacional e (2) Justiça Internacional, o mecanismo não foi capaz (ao menos ainda) de reconhecer que entre uma e outra existe a Arbitragem Internacional, a Justiça Universal, a Extraterritorialidade, a Cooperação Penal, que são o “3”, um segmento da realidade do Direito Internacional que existe e deve ser considerado.

Então, a Justiça Nacional trata de questões externas de seu respectivo país e aplica leis internacionais (não de outros países, a não ser em situações excepcionais de extraterritorialidade) e, por isso mesmo, julga indivíduos e empresas de outros “governos”.

Daí, a Justiça Nacional tem sim autoridade sobre cidadãos que não são seus e sobre seus próprios cidadãos, mesmo quando fora do país, em certas circunstâncias.

Quanto à “interferência”, evidentemente, um tribunal de um país não tem mesmo como “interferir” no tribunal de outro Estado. Note-se que, mais uma vez, a IA está se atrapalhando.

Para explicar a diferença entre Justiça Nacional e Internacional, a IA buscou antes estabelecer o conceito de Justiça Nacional a partir de Justiça Não-Nacional, e isto a conduziu a erros em cadeia, quando partiu para a definição de Justiça Internacional.

O que é Justiça Nacional não foi perguntando, e sim a sua diferença de Justiça Internacional, e a IA procura estabelecer o que é Justiça Nacional a partir de sua relação com as Justiças de outros Estados, o que não é, definitivamente, o caso do questionamento.

INTERNACIONAL não é NÃO-NACIONAL, em termos jurídicos. É preciso ABSTRAIR do binômio para o andar superior, o terceiro andar, onde está o INTERNACIONAL.

Mais uma vez, a lógica binária da IA causa embaraços, porque ela busca dizer o que é INTERNACIONAL a partir do que é NÃO-NACIONAL e a Justiça Internacional não é uma JUSTIÇA NÃO-NACIONAL. De fato, à Justiça Nacional se contrapõe, na lógica binária, à Justiça Não-Nacional, e foi assim que, equivocadamente, pensou a IA. Porém, a pergunta é para distinguir as Justiças Nacional e Internacional.

A ideia que a IA faz de Justiça Nacional, por exemplo, exclui a extraterritorialidade, o que tempera aquela sua ideia de “exclusividade”.

Um exemplo simples: Um extravio de bagagem de um cidadão brasileiro no aeroporto de Amsterdã em um voo da Air France é um fato que aconteceu em outro país, praticado por empresa estrangeira e que, todavia, pode ser julgado pela Justiça brasileira com espeque no artigo 21, inc. I, e § único, Código de Processo Civil brasileiro.

Quanto à autoridade judiciária ter poder jurisdicional sobre todos os cidadãos e entidades dentro das fronteiras do país, a resposta é relativa; o poder jurisdicional sobre a pessoa resulta, de regra, da territorialidade, isto é, de a pessoa estar no território do país, não da cidadania, tanto é que um cidadão estrangeiro pode ser processado civil ou criminalmente em outro.

No caso do Brasil, por exemplo, a questão da “exclusividade” usada pela IA para caracterizar a Justiça Nacional é imprecisa e faz tábula raza dos princípios da extraterritorialidade do artigo 7º, do Código Penal Brasileiro.

À vista da União Europeia, de sua organização, estruturação e normas da União que se entrelaçam com as normas domésticas dos Estados membros da União, pode-se dizer que é errada a concepção que a IA tem de Justiça Nacional e de Justiça Internacional pelo fato de que o mecanismo parece desconhecer, completamente, a relação do Direito Internacional Público com o Direito Internacional Privado e o resultado dessa relação para os conceitos de Justiça Nacional, Justiça Internacional e a diferença entre elas.

O critério distintivo entre Justiça Nacional e Justiça Internacional deve ser o orgânico, como vimos: Critério Orgânico: Diferença Fundamental entre Justiça Nacional e Internacional.

Ao explicar o conceito de Justiça Internacional a partir de seu “âmbito”, a Inteligência Artificial faz confusão maior.

Embora o conceito de Justiça Internacional possa ser mais estrito (em face do conceito mais amplo de adjudicação internacional), é errada a ideia de que os julgamentos dos órgãos judiciais internacionais se cingem às disputas Estado-Estado.

A Justiça Internacional, mesmo no seu espectro conceitual estrito, julga os casos Estado-indivíduo também. Exemplo maior dessa afirmação está no clássico julgamento no Tribunal Arbitral do caso do Rainbow Warrior! E não é só. Existe o ICSID – uma organização de Justiça Internacional cuja espectro de julgamento subjetivo é Estado investido de um lado e nacional investidor de outro Estado. E aquele órgão de Justiça Internacional tem força a ser respeitada pela autoridade das Justiças domésticas. E se não respeitar? O Estado cuja Justiça Nacional desrespeita o julgamento do ICSID comete infração internacional!

Por outro lado, também não corresponde à realidade que a Justiça Internacional (mesmo no sentido estrito, como considera a IA em sua resposta) tem competência apenas para as causas relativas a direitos humanos e crimes contra a humanidade, já que há um vasto repertório de julgamentos de outros assuntos civis, tais como a apreensão de embarcação, questões de limites territoriais, zonas marítimas, dívidas etc. 

A Inteligência Artificial considera Justiça Internacional de forma muito estrita (intergovernamental) e como um instrumento de Direito Internacional Público voltado a questões que são mais “corriqueiras” na internet, em termos de que o que não é muito difundido na rede mundial de computadores não é considerado existente pela IA. Esse é um problema a ser resolvido tecnicamente, pois a IA precisará desenvolver algum método que a proteja de legitimar FACTOIDES, transformando em verdade mentiras que são repetidas.

Quanto à autoridade das Cortes Internacionais sobre Estados, o princípio do consentimento é relativo.

Há muito mais Cortes Internacionais com jurisdição compulsória do que meramente consentida. Exemplo recente está na arbitragem do Mar da China; no caso, a República Popular da China se viu processada e condenada em um processo movida pelas Filipinas com relação àquele mar, e tudo isso aconteceu sem o consentimento do Governo chinês. Verifica-se, outrossim, que a Inteligência Artificial não considerou o princípio da compulsoriedade. Relevante artigo a respeito foi produzido pelo Professor Cesare Romano, “The Shift from the Consensual to the Compulsory paradigm in International Adjudication: Elements for a Theory of Consent“.

Ainda, não é certo que as decisões da Justiça Internacional dependem da “cooperação” do Estado condenado, o qual pode ser forçado a cumprir a decisão do órgão judicial internacional, bastando que o Conselho de Segurança da ONU expeça uma resolução autorizando o uso da força. 

A palavra é o instrumento do operador do Direito e o uso dela não pode ser manipulado por mecanismos binários.

Uma agência certificadora de sites informativos é uma condição necessária para conter a tendência da rede mundial de computadores se transformar em uma perigosa anárquica terra de ninguém.

A presença do Estado é necessária na internet, onde a liberdade de expressão deve ser muito bem observada, para que a rede não se desvalorize.

Citada agência certificadora poderia atribuir um selo a sites informativos cujos responsáveis pelo seu conteúdo sejam, comprovadamente, pessoas aptas a escrever responsavelmente pelo assunto, inclusive, responsabilizando-se juridicamente pelas informações que publicam na rede. Nada obstante tal selo não deva ser obrigatório, a ausência dele em sites informativos seria um importante indicativo de que a informação ali colhida pode ser falsa.

Esse é um caminho técnico para se coibir, por exemplo, que músicos escrevam sobre medicina, médicos informem sobre construção civil e assim por diante, sem absolutamente nenhum controle sobre nada. Apenas quem é malicioso teria interesse em que a rede mundial de computadores seja deixada como um mundo paralelo sem governo, apenas porque não tem a rede tangência física.

Enfim, vamos reproduzir um caso que, segundo se conta, não é uma lenda e é bem pertinente ao tema de a Inteligência Artificial ser empregada no Direito, especialmente, para dar decisões. 

Em sua obra sobre as “Riquezas da Terra”, JURI SEMJONOW reproduz uma história, a qual é bem adequada para ilustrar como poderá ser diferente o produto da lei, em face de sua aplicação com EQUIDADE.
Trata-se da narrativa de um acontecimento que foi contado por um jornalista russo em Odessa, tal qual ele ouviu de um peregrino recém-chegado de Meca…


«Governava, outrora, em Bagdá, um jovem Califa cujo nome já mergulhou no esquecimento, mas cuja sabedoria ainda vive até hoje na memória da posteridade. Seu Grão-Vizir que, como todos os velhos, tinha a preocupação dominante da pureza aos hábitos e aos bons costumes, foi responsável por um decreto que estabelecia rígidas regras ao vestir feminino.»

«Certo dia, a polícia deteve uma jovem mulher cujo “toilette” contrariava totalmente todos os castros padrões da lei. Levada ao Tribunal, a gravidade do caso despertou a atenção do Monarca que resolveu, ele mesmo, assumir a condução do julgamento. Após se inteirar do caso, ensimesmou-se por um instante; então, emergiu de sua meditação e questionou:

_ O que diz a lei que deve ser feito?

Ao que respondeu o Grão-Vizir prontamente:

_ A mulher deve ser apedrejada!

Em seguida, afirmou o Grão-Kadi:

_ A mulher deve ser apedrejada!

Por fim, confirmou o ministro de segurança, já com a voz um pouco mais baixa:

_ A mulher deve ser apedrejada!

Alteando a voz, replicou o Califa:

_ Que seja a lei cumprida!

Então, o Califa tirou um enorme diamante que ornava seu turbante e jogou-o ao corpo da mulher; a pedra, penetrando numa abertura dos véus que encobriam o colo da jovem, deslizou por seu corpo até cair delicadamente aos seus pés. Como a lei deveria ser cumprida, assim procedeu também o Grão-Vizir, jogando um monstruoso rubi que, percorrendo suavemente as pernas da mulher, foi deitar-se aos seus pés junto ao diamante. Em seguida, foi a vez do Grão-Kadi jogar-lhe uma safira; do ministro de segurança, que lhe arremessou sua esmeralda e, então, todos os da assistência do julgamento no Tribunal passaram a jogar suas pequenas pedras de esmeraldas, rubis, safiras, em uma chuva rutila.

A lei fora cumprida e o processo arquivado.»

Pergunto: Qual teria sido o julgamento da Inteligência Artificial? Sem dúvida, a mulher seria apedrejada até a morte.

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