Introdução
Ao deixar os Estados Unidos, onde era uma turista euro-brasileira, e entrar em jurisdição italiana, o caso da parlamentar brasileira Zambelli suscita novos e mais interessantes contornos de adjudicação internacional.
Com objetivo de contribuir para o estudo técnico dos fatos, o primeiro ponto de interesse é determinar os diferentes desdobramentos dos eventos nos planos do Direito Internacional Privado, que é um instrumento de Justiça Doméstica (no caso em consideração), e do Direito Internacional Público, que é brandido pela Justiça Internacional.
Para quem tem interesse nessa questão nada tranquila de separação conceitual de Direito Internacional Público e Privado, que agita controvérsias na conceituação de Justiça Internacional, recomendo a leitura de Artifice, Ideology and Paradox: The Public/Private Distinction in International Law de A. Claire Cutler (Artifice, Ideology and Paradox: The Public/Private Distinction in International Law on JSTOR) e também a leitura de International Courts and Tribunals de Christian Tomuschat.
Disputa doméstica Italiana de interesse do Brasil
Sempre é relevante distinguir que o interesse jurídico de um Estado na prisão de uma pessoa que se encontra sob a autoridade de outro Estado é uma questão que se divide em dois planos, o do Direito Internacional Privado, quando se analisam aspectos de cooperação penal entre os Estados em relações que podem ser bilaterais ou multilaterais, e na seara do Direito Internacional Público, quando eventual conflito entre aqueles Estados deve ser resolvido por uma entidade jurisdicional internacional, ou seja, uma entidade adjudicatória que não pertence à estrutura judiciária das Soberanias envolvidas.
Na realidade, dentre as múltiplas e movediças definições de Justiça Internacional, o único traço infalível de internacionalidade de uma corte é o da sua natureza extraneous, ou seja, externa ou estranha à estrutura judiciária dos Estados, de modo que o órgão judicial internacional tem poderes adjudicatórios que não são soberanos territorialmente (como os dos tribunais domésticos dos Estados), mas internacionalmente eficazes.
No caso da parlamentar Zambelli, em um primeiro momento, se ela será presa ou não e, por fim, extraditada ou não da Itália para o Brasil, é uma questão que se iniciará entre os canais diplomáticos dos Poderes Executivos da República Federativa do Brasil e da Repubblica Italiana.
Provavelmente, o assunto será judicializado nos tribunais italianos, onde, então, será tratada não como uma questão de Justiça Internacional, mas de Justiça Nacional italiana, que estará aplicando o Direito Internacional Privado entre os Estados brasileiro e italiano em torno da liberdade da parlamentar que, tendo dupla cidadania, na Itália, será considerada italiana.
Disputa internacional entre os Estados da Itália e do Brasil
Mas, supondo a hipótese que a Itália negue a extradição da parlamentar, o problema pode ser escalado para alguma corte internacional arbitral ou judicial quando, então, o Brasil pode processar a Itália. Dentro dessa suposição, o Estado do Brasil pode alegar que, ao negar a extradição da parlamentar, o Governo italiano infringiu obrigação de caráter internacional.
A Itália aceita a jurisdição compulsória da Corte Internacional de Justiça através de declaração específica sob o Artigo 36, § 2º, do Estatuto da Corte Mundial. Embora a aceitação brasileira tenha expirado sem ser renovada, falecendo reciprocidade, Brasil e Itália são signatários de uma convenção bilateral que reporta aqueles governos, obrigatoriamente, à Justiça Internacional. Na realidade, em uma eventual discordância do Brasil quanto ao destino que o governo italiano dê ao caso Zambelli, aquela Convenção de 1954 sobre Conciliação e Solução Judiciária entre a Itália e o Brasil terá decisiva importância em atar os dois países à uma solução definitiva pela Justiça Internacional.
Disputa internacional entre Zambelli e o Estado Italiano
Por outro lado, a própria parlamentar pode levar sua situação para uma Corte Internacional também, no caso, por exemplo, para a Corte Europeia de Direitos Humanos. Nesses hipótese, então, os mesmos fatos tornam-se uma disputa de Justiça Internacional entre a cidadã italiana Zambelli (que poderia ser tratado a nível de sua cidadania brasileira também) contra o Governo da Itália, a luz da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Refúgio
Ao deixar os Estados Unidos e se dirigir para a Itália, onde tem cidadania italiana, Zambelli fechou a porta ao direito de invocar a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados foi formalmente adotada em 28 de julho de 1951.
Disputa internacional entre Zambelli e o Estado brasileiro
Uma vez transitada a condenação na Suprema Corte brasileira, abrem-se no caso da parlamentar Zambelli duas vias cumulativas de Justiça Internacional na perspectiva do Direito Internacional Público de Direitos Humanos, já que, na condição de cidadã brasileira, não italiana, Zambelli pode fazer uma aplicação ou na Corte Inter-Americana de Direitos Humanos ou junto à Comissão de Direitos Humanos da ONU. Embora esse último não seja, exatamente, uma instância judicial, mas quase-judicial, legalmente, o órgão tem força legal de dirigir decisões, inclusive liminares (provisional measure), em face do Brasil. O Presidente LULA obteve uma liminar daquela entidade em 2018. Em sede do Habeas Corpus nº 163.943 PARANÁ, o STF do Brasil analisou aquela ordem da Comissão da ONU, não a enfrentando diretamente.
Essas duas vias não estão prejudicadas, tecnicamente, pelo abandono do país.
Estados Unidos ou Itália?
Na minha perspectiva, meramente para efeitos de estudos acadêmicos de interessados tecnicamente no caso, eu especularia que os Estados Unidos constituiriam uma chance mais apropriada para a Parlamentar. Primeiro, havia reais chances de Zambelli se beneficiar, ao menos provisoriamente, da Convenção de Refugiados e seu respectivo protocolo. Segundo, haveria bastante tempo até a definição de sua condição de refugiada, o que travaria, legalmente, medidas segregativas de liberdade em solo americano. Terceiro, na hipótese de indeferimento, Zambelli não seria nem deportada nem extraditada, mas permaneceria com direito de se deslocar para a Itália, onde, então alguns anos passados, poderia enfrentar o pedido de extradição, o qual está antecipando com sua ida para a Itália agora. Quarto, os Estados Unidos são praticamente nada vulneráveis às instâncias internacionais, ao contrário da Itália, sendo bem dificultada uma ação do Governo do Brasil contra aquele Estado, no caso de beneficiar Zambelli.
Perspectivas sob o Direito Internacional Privado e Italiano
A Constituição Italiana, ao contrário da brasileira, não contém uma proibição taxativa de extradição de italiano. A propósito, também ao contrário da Constituição brasileira, a Carta Magna Italiana não distingue entre nacionais natos, não-natos e ou naturalizados, porque, ao contrário daquele país, o Brasil, um país muito jovem, não tem uma diáspora com que se preocupar (como acontece com países como Portugal ou Espanha) de modo que não sofre pressão política nesse tema, notadamente, de vertentes políticas “de esquerda” (sic).
Penso que será demorada a solução jurídica do caso Zambelli, mas não terá um bom desfecho para a parlamentar.
O primeiro ponto é que, como dito, a Constituição italiana permite extradição de italiano, nos termos de seu artigo 26:
“Articolo 26. L’estradizione del cittadino può essere consentita soltanto ove sia espressamente prevista dalle convenzioni internazionali. Non può in alcun caso essere ammessa per reati politici”.
Tratado de 1931 (Mussolini-Vargas)
Ao contrário do que se tem propagado na internet, o Brasil pode requerer que o caso da Zambelli seja considerado não sob o prisma do Tratado de 1989 (promulgado pelo Decreto nº 863, de 9 de Julho de 1993), e sim pelo escopo do tratado bilateral Ítalo-brasileiro de 1931, firmado no Rio de Janeiro a 28 de novembro daquele ano, objeto de promulgação pelo Decreto nº 21.936, de 11 de Outubro de 1932.
Segundo as regras de Direito Internacional, aquele tratado não está revogado pelo posterior acordo bilateral de 1989.
Do lado italiano, aquele tratado de 1931 encontra-se aprovado pela Legge 3 Giugno 1932, nº. 682.
Aquela lei italiana, assim como a contraparte brasileira dela, tisnam-se pelo autoritarismo fascista daquele tempo. É evidente que há o argumento da inaplicabilidade histórica por razões políticas ligadas à Era Benito Mussolini-Vargas. Todavia, o fato é que, quando do Decreto Legislativo n.º 200, de 22 de dezembro de 2008, que contém medidas urgentes de simplificação regulatória, é convertido na Lei 18 de fevereiro de 2009, nº 9, seu artigo 2º, o § 1º, é substituído por uma disposição que mantém a vigência daquela lei promulgadora do tratado de 1932, então retirada da revogação do Anexo I.
Logo, a Lei italiana nº 682 de 3 de Junho de 1932 tem o vigor da sua força resguardada pela aplicação dos parágrafos 14 e 15 do artigo 14 da Lei nº 246, de 28 de novembro de 2005. De fato, ali se lê que “17. Permanecem em vigor (…) d) as disposições que constituem obrigações impostas pela legislação comunitária e as necessárias à ratificação e aplicação de tratados internacionais.”
Autorização Expressa de Extradição de Nacional Italiano
Reza o artigo Quarto do Tratado de Extradição entre Itália e Brasil, firmado em Rio de Janeiro em 28 de novembro de 1931 que:
“Artigo Quarto. As Altas Partes contratantes concederão a extradição de seus próprios cidadãos, nos casos previstos no presente Tratado.”
Esse dispositivo legal, nada obstante tão antigo e emergente em uma fase ditatorial, é albergado pela Constituição Italiana que, como se viu, preconiza que:
“Artigo 26. A extradição de um cidadão só poderá ser permitida quando expressamente prevista em convenções internacionais. Em nenhum caso poderá ser admitida por crimes políticos.”
Conclusão
A extradição é um processo jurídico e político, mais político que jurídico, sendo que a previsão de seus resultados é apenas probabilística.
Ainda que se considere que a parlamentar brasileira não seja extraditada, quer por uma interpretação legal mais benigna, quer por uma força política simpática à sua causa, o fato é que, aparentemente, não escaparia a parlamentar de uma persecução dentro da própria Itália, onde também são bem prováveis a sua condenação.
Ausentar-se do Brasil, então, embora possa ter postergado o cumprimento da condenação, quase certamente não livrará a parlamentar de sua punição, seja no Brasil, seja na Itália.