“Se o imóvel vai ser levado a leilão mesmo, qual a diferença entre a penhora do imóvel e a penhora dos direitos sobre o imóvel?”
1. Introdução: Penhora de imóvel alienado fiduciariamente
Há algum tempo, recebi uma consulta de um advogado que, na defesa de um devedor de cotas condominiais, teve o imóvel penhorado, não obstante a propriedade estivesse fiduciada à Caixa Econômica Federal, ou seja, a propriedade não era do constituinte do consulente, i.e., fiduciante devedor do condomínio, mas sim do banco fiduciário e credor do financiamento, Caixa Federal.
Para refrescar a memória: A compra e venda financiada de um imóvel pelo Sistema Financeiro da Habitação, ou mesmo fora dele, pode ser garantida pelo próprio imóvel pela alienação fiduciária em garantia (AFG).
O Art. 2º, da Lei nº 14.711/2023 (Marco Legal das Garantias), que trouxe importantes alterações à Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, Lei nº 9.514/1997 (que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências) dá o seguinte conceito: “Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”.
Daí resulta que a ALG é um contrato de relação de consumo, adjeto ao financiamento bancário, instituído a favor do agente fiduciário, que gera um direito real de garantia.
2. Penhora sobre a propriedade ou sobre os direitos de aquisição do devedor condominial
Em lapidar julgamento do E. TJSP, ficou sintetizado que:
“A questão em discussão consiste em determinar se é possível a penhora do imóvel gerador dos débitos condominiais, ainda que gravado com alienação fiduciária, para garantir a execução promovida pelo condomínio exequente. (…) Nos termos do art. 797 do CPC, a execução se realiza no interesse do credor, que pode indicar bens para penhora conforme a ordem estabelecida no art. 835 do CPC. A dívida condominial possui natureza propter rem, vinculando-se diretamente ao imóvel, independentemente de quem seja o proprietário, devedor fiduciante ou credor fiduciário. A jurisprudência consolidada do STJ reconhece a possibilidade de penhora de imóvel gravado com alienação fiduciária para garantia de dívida condominial, desde que haja a intimação do credor fiduciário, nos termos do art. 889, V, do CPC” – (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 23453592620248260000 Sertãozinho, Relator.: Carmen Lucia da Silva, Data de Julgamento: 19/02/2025, 33ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 19/02/2025)
Assim, a penhora pode ser sobre a propriedade (resolúvel) ou sobre o direito real de garantia (“direito de aquisição”). É relevante lembrar que são direitos autônomos, titularizados por diferentes sujeitos: Aquele pelo banco e esse pelo devedor condominial.
Então, concluindo a primeira parte da consulta, é indiferente, de fato, penhora sobre o direito de aquisição do devedor ou a penhora sobre a propriedade resolúvel do banco. Porém, a execução sobre um bem gravado com AFG, pouco importando se a penhora é sobre os direitos de aquisição ou sobre o imóvel, apresenta uma particularidade na avaliação que se reflete no edital e, ainda, na arrematação.
3. Avaliação
Havendo AFG gravando o imóvel, a penhora afetará dois direitos distintos: a propriedade e o direito real de aquisição. O valor daquele é o da avaliação do imóvel; o valor desse é a soma das prestações pagas (+ entrada), monetariamente corrigidas à data da avaliação.
Ainda deve ser verificada a relação entre as parcelas pagas (+ entrada) e o valor faltante para a quitação do imóvel no momento da avaliação, o que demanda, certamente, cálculos de abatimento proporcional de juros, seguro e demais encargos, conforme os critérios contratuais, inclusive o valor do imóvel no contrato, e não o da avaliação.
“Na execução de direitos de aquisição derivados de bem imóvel financiado, a determinação do valor econômico do bem é aferida pela avaliação “não somente o valor de mercado do imóvel, mas pela subtração deste do quantum relativo ao saldo devedor e demais encargos contratuais ainda não pagos ao credor fiduciário” TJ-DF – 7529723620208070000 DF 0752972-36.2020.8.07.0000
4. Avaliação em duas camadas
Realmente, diferente de uma avaliação de propriedade plena, que se exaure na simples apuração do valor do imóvel pelo perito ou oficial de justiça avaliador, a avaliação de uma propriedade gravada de ônus real é complexa. Essa complexidade resulta da imperativa necessidade de duas camadas avaliadoras: A avaliação do imóvel (como se fosse uma propriedade plena) e a avaliação do direito real de garantia sobre aquela propriedade. “Quanto falta para a quitação antecipada do contrato de financiamento no momento da avaliação?” e “qual é o valor da somatória da entrada + prestações pagas até a avaliação, com correção monetária?”. A determinação desses dois valores compõe o direito real de aquisição, mas sob perspectivas distintas, como veremos adiante.
Situação 1: Imóvel avaliado em R$ 600.000,00. Valor de entrada + prestações (corrigidas) = R$ X
Situação 2: Imóvel avaliado em R$ 600.000,00. Valor para quitação antecipada em = X/2
Recentemente, a Col. 11ª Câmara de Direito Privado do TJSP julgou, em voto brilhante do Relator Marco Fábio Morsello, que:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – Execução de título extrajudicial – Decisão que reputou prejudicada a realização de avaliação do bem imóvel pelo perito judicial no contexto da penhora de direitos aquisitos sobre bem imóvel – Irresignação do executado – Penhora que recaiu exclusivamente sobre os direitos da devedora fiduciante, decorrentes da alienação fiduciária, consoante expressa previsão do artigo 835, XII, do Código de Processo Civil – Na hipótese de leilão, a oferta será dos direitos aquisitivos e não do imóvel em si, de forma que o arrematante se sub-rogará nos direitos e obrigações do devedor fiduciante, substituindo-o na relação contratual com o devedor fiduciante, assumindo o resgate do saldo da dívida em cumprimento ao contrato de financiamento – Valor dos direitos aquisitivos que corresponde ao valor de mercado do imóvel dado em garantia ao credor fiduciário, descontado o saldo devedor e os encargos contratuais devidos ao credor fiduciário, notadamente tendo em vista a complexidade e especificidade da alienação dos direitos aquisitivos de bem imóvel – Decisão reformada no tocante à avaliação do bem imóvel – Recurso provido. (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 20597401520248260000 Bauru, Relator Marco Fábio Morsello, Data de Julgamento: 28/06/2024, 11ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/06/2024)
5. Artigo 886, inc. II, combinado com o Artigo 835, inc. XII, CPC
Art. 886. O leilão será precedido de publicação de edital, que conterá: I – a descrição do bem penhorado, com suas características, e, tratando-se de imóvel, sua situação e suas divisas, com remissão à matrícula e aos registros; II – o valor pelo qual o bem foi avaliado, o preço mínimo pelo qual poderá ser alienado, as condições de pagamento e, se for o caso, a comissão do leiloeiro designado; (…) VI – menção da existência de ônus, recurso ou processo pendente sobre os bens a serem leiloados.
Art. 835. A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem: (…) XII – direitos aquisitivos derivados de promessa de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia;
A leitura desses dois dispositivos processuais, à luz dos julgados citados, nos orienta a que, no edital, devem constar, obrigatoriamente, o valor da avaliação do imóvel de R$ 600.000,00 e o valor dos direitos de aquisição do devedor de R$ X (situação 1).
6. O preço mínimo pelo qual poderá ser alienado
O inc. II, do art. 886, CPC, é redigido no singular porque o legislador processual civil parte do fato corriqueiro; o edital tem por objeto um só bem. Mas, no caso de que falamos, existem dois bens sobrepostos: A propriedade do bem e o direito real sobre o bem.
Sabemos que, por força do artigo 891, § único, do CPC, de regra, os imóveis são arrematados apenas na segunda praça e pelo valor mínimo não vil, ou seja, 50% da avaliação.
No caso do imóvel gravado com AFG, independente do critério legal de vileza, o fato é que a arrematação não pode ser inferior ao valor da avaliação dos direitos de aquisição do devedor, pela razão de que, como esclarecido pelo citado acórdão do TJSP, o arrematante vai se “sub-rogar” naquele valor, de modo que, permitida a arrematação por valor que, sendo 50% da arrematação (e, portanto, não-vil), mas inferior ao valor financeiro dos direitos reais de aquisição, estará o arrematante se locupletando daquele valor representado, no caso, pela diferença a mais entre 50% da avaliação e o valor financeiro dos direitos reais de aquisição.
7. Propriedade plena e propriedade resolúvel
A diferença entre a situação da propriedade plena, que pode ser alienada por até 50%, e a da propriedade resolúvel, não é estabelecida em função do artigo 891, § único, CPC; o impedimento não é à vileza da arrematação e sim ao locupletamento, especificamente, na situação em que o valor da amortização corrigido é maior que 50% do valor da avaliação.
8. 2ª Situação
Qualquer que tenha sido o valor da arrematação, o valor definido para a 2ª situação é importantíssimo para orientar na liquidação do valor que resta (após pagamento do condomínio, tributos, despesas processuais em geral) entre o devedor e o banco. Nesse caso, o banco só poderá levantar o valor correspondente ao que, à época da avaliação, era devido em caso de liquidação antecipada do contrato. É muito importante esse detalhe.
9. Conclusão
Nada obstante seja, na prática, indiferente a penhora sobre o imóvel ou a penhora sobre os direitos reais de garantia, e nesse sentido seja a orientação dominante nos tribunais, a diferença está entre a penhora sobre um imóvel de propriedade plena e o imóvel gravado com AFG, caso em que o valor dessa poderá ser um limite mínimo superior ao parâmetro de não-vileza de 50% do valor da avaliação do artigo 891, § único, CPC.

