O Projeto de Lei dos Aeroclubes: Uma Análise Crítica

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O Projeto de Lei do Senador Astronauta

O senador “Astronauta Marcos Pontes” apresentou o Projeto de Lei nº 6.144/2025 no Senado, que “dispõe sobre a proteção, o reconhecimento e o incentivo aos aeroclubes brasileiros”

Devido à minha experiência de piloto de avião, investigador de acidente aéreo e professor de direito aeronáutico por vários anos, acho importante dar minha contribuição sobre o projeto do Marcos Pontes, até porque, em 1999,  foi no Aeroclube de São José dos Campos onde iniciei minha prática de piloto, dali passando para o Aeroclube de Sorocaba (2000), onde brevetei, e, por fim, no Aeroclube de São Paulo, onde permaneci de 2007 a 2018, durante o tempo em que fui proprietário-operador de um Embraer Tupi, o valente PT-NZC, e onde fui honrado com o título de membro honorário, em 2017.

As considerações que faço aqui são respeitosas ao senador, a quem muito admiro, e não prejudicam sua evidente boa intenção na propositura daquele projeto de lei. Ainda, esse texto tem mero caráter colaborativo, servindo apenas de reflexão sobre o projeto. Por isso, não pode esgotar o assunto nem servir de parâmetro para eventuais causas em andamento envolvendo aeroclubes e administradores aeroportuários.

Introduzindo os Aeroclubes

Muitas pessoas confundem aeroclube com aeródromo ou simplesmente não sabem qual é a diferença entre um e outro.

Aeroclube é uma pessoa jurídica de direito privado; aeródromo é um lugar destinado à movimentação de aeronaves, ou seja, é a designação genérica de aeroporto. Consequentemente, o aeroclube é uma entidade que pode ocupar um espaço em um aeródromo, onde estará executando, essencialmente, o ensino prático e teórico de aviação civil. Por exemplo, Guarulhos é um aeródromo, assim como Congonhas e o Campo de Marte, todos os três em São Paulo. Apenas o Campo de Marte dispõe de um aeroclube, que é o aeroclube de São Paulo.

 

Uma Complicada Infraestrutura

Dentre as infraestruturas nacionais (terrestres, marítimas, telefonia, energia etc.), a aviação civil é, tradicionalmente e de longe, a mais complexa de todas!  Essa minha afirmação resulta da observação de uma série de  interesses antagônicos (comerciais, civis, públicos, privados e militares) historicamente envolvidos na aviação civil. Trata-se, na verdade, de um setor com particularidades.

Aspecto econômico

No plano econômico, voltando-se à década de 90, quando da presidência de Collor (1990/1992), vemos que a Administração Pública brasileira passou por uma inquietante reforma ditada pela adoção da política neoliberal. O Governo privatizou importantes setores econômicos, como o das telecomunicações (Emenda Constitucional nº 08/95), permitindo que o serviço de telefonia fosse prestado mediante concorrência de empresas privadas (ou seja, extinguiu o monopólio do setor); houve a desnacionalização de atividades estratégicas que antes só podiam ser exploradas por brasileiros, por exemplo, abrindo ao capital estrangeiro a possibilidade de exploração de potenciais econômicos (Emenda Constitucional nº 06/95); desestatizou empresas, as quais foram transferidas à iniciativa privada mediante leilão, como aconteceu com a Cia. Vale do Rio Doce.

Nesse contexto, era de se imaginar que a aviação civil brasileira seria uma infraestrutura relativamente fácil de adaptar aos novos tempos porque, no setor de transporte aéreo, não havia necessidade de privatização, visto que o serviço aéreo já era prestado (desde sempre) por empresas privadas; não era necessária nenhuma desestatização, posto que o Poder Público não tinha empresa sua explorando o serviço aéreo.

De fato, o transporte aéreo precisava de ajustamentos apenas: Depois de mais de sessenta anos, impunha-se a necessidade de: a) separar a organização da infraestrutura aérea militar da civil que fora unificada por Getúlio Vargas, em 1941, quando criou o Ministério da Aeronáutica (hoje, extinto); b) atrair investimentos; c) estabelecer regras de política econômica que pudessem corrigir distorções nascidas a partir da política de intenso controle público, que se iniciou na década de 60 e se intensificou durante a Ditadura Militar; d) alinhar a administração do transporte aéreo civil brasileiro com os padrões norte-americano e europeu, melhorando o fluxo de informações e comércio aeronáutico do Brasil com o mundo; e) implementar no setor infraestrutural aeronáutico civil um caráter mais técnico, implementando uma política econômica mais estável e previsível, que não ficasse atrelada às vicissitudes do Governo. Porém, nenhuma daquelas tarefas se implantou completamente até os dias  de hoje!

Aspecto legal

Para alcançar aqueles objetivos básicos, no terreno legal, em 2000, o Governo lançou o projeto da Agência Nacional de Aviação Civil, cuja missão não é apenas “substituir” o Departamento de Aviação Civil (DAC). Ocorre que, por aquele tempo, já estava há vários anos “em estudo” na Presidência da República o projeto de um “novo” código brasileiro de aeronáutica, que também já tinha recebido sugestões públicas no princípio dos anos 2000. 

Ora, a perspectiva de criação de uma agência para o setor aéreo gerou uma interpolação com aquele projeto que, por sinal, continua sem uma solução há mais de 25 anos. Para adaptar o Código de 1985 à realidade técnica e econômica dos dias que passaram, o Brasil tem produzido leis pontuais que fizeram do Código Brasileiro de Aeronáutica uma terrível colcha de retalho, por exemplo, é o caso da Lei da ANAC, Lei do Sipaer, Lei da Nav BrasilLei nº 14.368/2022 (Lei do Voo Simples),  para citar as mais icônicas apenas.

Pois bem. É a meio desse verdadeiro “balaio de gatos” que o nosso astronauta apresenta o projeto de lei de aeroclubes.

Projeto de Lei Retrógrado com os esforços de modernização do setor aeronáutico (iniciados em 1995)

O primeiro ponto que chama a atenção no projeto do astronauta é que ele vai na contramão da formatação neoliberal que, desde a presidência de FHC (1995/2003), não pode haver, dentro de um setor regulado, agentes “privilegiados” em detrimento de outros, o que compromete todo o sistema.

O aeroclube é uma entidade que teve o seu tempo. É doído dizer, mas acabou. Podemos amar um Chevrolet 1957 Wagon. Ele é lindo! Mas não é seguro, nem mais viável economicamente, para não falar das exigências ambientais atuais! Então, o aeroclube deve ir ao mesmo museu onde está o Chevrolet 1957, enquanto entidade “protegida” pelo Estado. É claro que pessoas, como eu, que amam a aviação, podem se organizar em sociedades civis e ingressar no setor aeronáutico, mas sem as “vantagens” do artigo 14, §, CBA, que isenta suas aeronaves de tarifas pela utilização do espaço aéreo brasileiro.

Ao tempo do Departamento de Aviação Civil (DAC), ou seja, quando a aviação civil era militarmente administrada pela Força Aérea Brasileira, os aeroclubes eram tratados como “filhos”. Bons tempos. Administradores de aeroclubes, sócios e alunos eram “pessoas consideradas” da família aeronáutica.  Realmente, tenho saudades. Mas acabou.

A Agência Nacional de Aviação Civil não herdou esse “carinho” pelos aeroclubes justamente porque é uma entidade de outros tempos, neoliberais, regulatórios, sem vínculos com os “anos dourados” (1950) do Movimento Asas para o Brasil. Lembro-me de que, em 2006, dava aulas de direito aeronáutico em cursos preparatórios para o primeiro concurso da Agência Nacional de Aviação Civil, quando explicava o “aeroclube”, os alunos “torciam o nariz”. Não compreendiam o romantismo protecionista, com raízes em Getúlio Vargas, no cromossomo dos aeroclubes.  

Uma consideração importante com relação à Lei do Voo Simples de 2022 é que ela foi precedida por uma Medida Provisória nº 1.089, de 2021, que apresenta uma pertinente justificativa econômica modernizadora da infraestrutura de aviação civil. Devem ser lidos os itens 8 a 11 da justificativas daquela medida provisória para se compreender que a revogação dos artigos 98 e 99, do CBA de 1985, entre vários outros, tiveram por objetivo, justamente, “forçar mais um pouco” a estrutura obsoleta da aviação civil, em mais um esforço na concretização da plena desregulamentação do setor aeronáutico civil, tal qual já dissemos acima, o qual tem sido sempre muito resistente às modernizações eliminatórias de “privilégios”, “reserva de mercado”, “intervenção do Estado do domínio econômico”, “fisiologismos” etc.

Nessa linha de visada, o projeto de lei é uma proposta de um passo atrás na modernização da aeronáutica brasileira.

Aparentes Inconstitucionalidades

Se os aeroclubes e as demais entidades afins, uma vez autorizados a funcionar, são considerados de utilidade pública, em pé de igualdade, nos termos do artigo 97, § 2º, do CBA, por que o projeto estabelece privilégios apenas para os aeroclubes? E as demais entidades que se constituem em centros de instrução de aviação civil (CIAC)? Lendo-se o CBA e não existindo mais a antiga regulamentação brasileira de homologação aeronáutica (RBHA) do Departamento de Aviação Civil (DAC), o que justifica o projeto? Realmente, absolutamente nada. Trata-se de um projeto que realmente só atrasa a aviação civil.

Outro aspecto de aparente inconstitucionalidade está na proposta contida no seu § 8º:

§ 8º Fica assegurado aos aeroclubes que tenham sido removidos de áreas de aeródromos anteriormente ocupadas o direito à restituição das áreas ou à realocação em espaços equivalentes, com garantia de edificações e infraestrutura de padrão similar às existentes, preservando-se sua plena capacidade operacional, incluindo: I – áreas edificadas; II – pátios de aeronaves; III – acessos privados à área do aeródromo; IV – a área total originalmente ocupada, se removido totalmente do aeródromo.

Verifica-se que a lei, além de retrógrada, é retroativa, alcançando situações passadas e criando direitos que, muito provavelmente, abrangem atos jurídicos perfeitos. Por exemplo, o despejo do Aeroclube do Brasil, em Jacarepagua, em 2014. Ora, tendo sido o despejo promovido pela INFRAERO, como se resolveria, na prática, nos dias de hoje, a aplicação do § 8º à concessão em curso? O Aeroporto de Jacarepaguá (SBRJ), também conhecido como Aeroporto Roberto Marinho, é administrado pela PAX Aeroportos, uma concessionária que assumiu a operação privada do terminal em setembro de 2023

Cuidado Estratégico com a Aviação Civil

A reserva da aviação civil é estrategicamente importante. Todavia, precisamos ir devagar com o andor porque o santo é de barro. O Estado deve fazer com que o incentivo à aviação civil venha de quem a utiliza, o empreendedor aeronáutico, por exemplo, por meio de incentivos fiscais. Portanto, mesmo sob o aspecto de que o aeroclube teria um papel estratégico importante na aviação civil, não se sustenta.

Desvios de Finalidade nos Aeroclubes

Ressalvada a generalidade das entidades, que são administradas por pessoas honestas, o fato é que, especialmente no interior de São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, existem aeroclubes que se tornaram “cabides” de aeronaves privadas, inclusive, de deputados federais. Essas aeronaves são “agregadas” como se fossem destinadas à instrução, mas são, realmente, empregadas apenas em serviços aéreos privados e, então, isentas de tarifas de navegação, conforme isenção do artigo 14, § 5º, CBA. E não é só. Tais aeroclubes se tornam verdadeiros “clubes do bolinha”, geram lucros que não são contabilizados, mas sim embolsados, e os entusiastas da aviação ficam impossibilitados de se associarem, porque seus gestores estabelecem “jóias” milionárias.

Conclusão

Sempre com o respeito que merece o senador Marcos Pontes, o astronauta, PL/SP, é um equívoco Projeto de Lei nº 6.144/2025, em que pesem as boas intenções.

 

 

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