Advocacia Internacional, Transnacionalidade e Extraterritorialidade

Na advocacia de Justiça Internacional, um ponto de grande confusão é a diferença entre questões de advocacia internacional, de extraterritorialidade  e de simples transnacionalidade. Embora as três situações jurídicas sejam muito semelhantes, porque elas têm entre si um fator comum, elemento(s) de fato ou de direito relativo a Estados (Soberanias) distintos (as), elas precisam ser distinguidas à medida que, na prática, poderão exigir conhecimentos e até habilitação técnica específica do advogado.

“Advocacia internacional, ou em Justiça Internacional, é aquela cujo processo ocorre sob a jurisdição de um tribunal ou corte internacional, a qual, nada obstante exija alta especialidade técnico-jurídica,  não requer,  legalmente, exercício privativo de advogado em alguns tribunais internacionais, por exemplo, na Corte Internacional de Justiça da ONU”

A resposta mais pragmática, portanto, à dúvida se o seu problema deve ser tratado pelo especialista em Justiça Internacional depende da simples pergunta: Quem julgará essa minha questão? Se a resposta for “um tribunal, corte, juiz, arbitrador, comissário, painel etc.” que “não pertence à organização estatal de nenhum governo”, então, o seu problema é de Justiça Internacional.

Por exemplo, em um contrato de trading, há uma cláusula resolutória instituindo o Tribunal Arbitral da Câmara do Comércio do Brasil (TACC do Brasil) como o competente para resolver disputas emergentes daquele contrato. Note-se que o TACC do Brasil é um organismo adjudicatório que, nada obstante sediado no Brasil, tem natureza não-nacional (ou internacional). Consequentemente, a assessoria relativa a esse contrato é da especialidade da advocacia em Justiça Internacional.

Se aquela simples pergunta – quem julgará essa minha questão? – é suficiente para estremar, de um lado, a advocacia internacional e, do outro lado, a extraterritorialidade e a simples transacionalidade, resta a necessária distinção dessas duas últimas entre si, o que requer um exame daquele já citado fator comum: Elemento(s) de fato ou de direito relativo a Estados (Soberanias) distintos (as).

Elemento(s) de fato ou de direito relativo a Estados (Soberanias) distintos (as) em uma relação jurídica é qualquer aspecto de uma relação jurídica que se liga ao interesse de uma pessoa, instituição, organização ou do próprio Estado na jurisdição de outro Estado. A intensidade daquela ligação, sua extensão e objeto podem suscitar um conflito de jurisdição. A existência do conflito de jurisdição é a linha de distinção entre a transnacionalidade e a extraterritorialidade, o qual ocorre nessa, mas não naquela”.

Verificamos, então, que enquanto a internacionalidade se diferencia de simples transnacionalidade e de extraterritorialidade por uma condição (só há internacionalidade quando a relação jurídica disputada compete à jurisdição supranacional ou fora da jurisdição de qualquer Estado), a distinção entre a simples transnacionalidade e a extraterritorialidade é de grau: A relação jurídica disputada sempre competirá à jurisdição nacional (de um Estado), mas, conforme o nível ou medida do interesse, uma lei definirá o conflito de jurisdição entre os Estados interessados.

Importante, consequentemente, passar em revista situações nas quais existem um ou mais elementos de internacionalidade; porém, se a jurisdição para resolver uma disputa surgida daquelas situações não for de competência de um julgador supra-estatal, o caso pode ser de transnacionalidade ou de extraterritorialidade, mas não de Justiça Internacional.

Por conclusão:

“A internacionalidade, a extraterritorialidade e a transnacionalidade são situações que têm em comum uma relação jurídica em que existe (m) um ou mais elemento (s) de fato ou de direito relativo a Estados (Soberanias) distintos (as); a diferença entre elas reside no fato de que: Na internacionalidade, aqueles elementos determinam o julgamento da disputa emergente da relação jurídica perante uma corte internacional (que não pertence a nenhum Estado); na extraterritorialidade, aqueles elementos determinam o julgamento da disputa emergente da relação jurídica perante uma corte nacional (de um dos Estados ou Soberanias envolvidas interessadas) em decorrência de Leis de Conflito e, finalmente, na transnacionalidade, aqueles elementos determinam o julgamento da disputa emergente da relação jurídica perante uma corte nacional (de um dos Estados ou Soberanias envolvidas) sem aplicação de Leis de Conflito, justamente, porque não existe extraterritorialidade determinante do conflito entre os Estados a ser dirimido”. 

Nas situações 1, 2 e 3 o fator comum é constituído por elementos convergentes de Soberanias diferentes, ou seja, três transnacionalidades: (a) O estudante, sendo do Brasil, tem a permanente proteção consular de seu país natal; (b) o brasileiro está no território francês, o que faz com que sobre sua pessoa recaia o interesse do governo da França e (c) há um filho entre o nacional do Brasil e a nacional da França. Porém, o único caso de Justiça Internacional é o # 2.

 

Situação #1 [caso doméstico]

Potencialmente, a advocacia requerida na solução da situação #1 é de simples transnacionalidade, no caso, de atuação de um profissional jurídico habilitado pela competente barreau, que corresponde à seção regional da OAB, na França denominada Ordre des Avocats. Observamos que as transnacionalidades não retiram a natureza doméstica francesa da relação jurídica descrita na situação 1, de modo que, caso o brasileiro queira se opor à decisão do governo francês, precisará percorrer o circuito processual doméstico francês, de acordo com as leis francesas, a ser julgado por um juiz francês!

 

Situação #2 [caso internacional]

Considerando ser racialmente discriminatória a razão de decidir do governo francês na situação exemplificada, a situação #2 traz um elemento de internacionalidade, o preconceito racial do governo francês, de modo que a disputa em torno do indeferimento de permanência do brasileiro se torna objeto também de competência de um julgador internacional, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Essa competência da jurisdição internacional não exclui a competência doméstica dos tribunais franceses, os quais também podem julgar a legalidade, inclusive sob o prisma dos direitos humanos, do indeferimento do governo francês. Aquela internacionalidade resulta da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950 e da adesão francesa à Convenção do Conselho da Europa, assinada em Londres em 1949.

 

Situação #3 [caso extraterritorial]

Nessa última situação, surge a questão do brasileiro querer levar consigo para o Brasil a filha nacional francesa. Opondo-se a genitora francesa à pretensão do genitor sul-americano, pode o pai, no Brasil, demandar a guarda? Ou a definição da guarda do infante é de competência jurisdicional apenas da corte doméstica gaulesa? Aplica-se o princípio da competência da residência habitual da criança, mesmo não sendo o Brasil signatário da Convenção de Haia de 1996? Quid iuris? Nota-se que, quanto à legislação do Brasil, o contido no Art. 7o , do Decreto-Lei nº 4.657/42 (com a alteração da Lei nº 12.376/10): “A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família”. Mas, por outro lado, a competência do Juge aux Affaires Familiales é estabelecida pelo Direito Comum Francês (ou seja, quando envolve a relação da França com um país que não é Estado membro da União Europeia, caso do Brasil), no Artigo 1.070 do Code de Procédure Civile. Ora, como se verifica, há um conflito de leis, pois tanto o Brasil quanto a França podem ser competência jurisdicional sobre o assunto.