ANAC prevê proibir passageiros de usar transporte aéreo
Introdução
Nos países de economia liberal, há décadas funcionam na infraestrutura do Estado as agências reguladoras que atuam em diversos ramos tais como energia, água, transportes terrestre, aquático, ferroviário e aéreo, saúde pública e assim por diante, nas esferas de poder federal ou local (Estadual, por exemplo). Originárias do direito norte-americano, essas entidades são dirigidas por agentes públicos qualificados que tomam decisões autônomas do Governo central, aos quais se vinculam apenas indiretamente.
A propósito, nos Estados Unidos, a importância técnica e ética da atuação das agências ocupa setores que não são apenas de infraestrutura, mas que requerem conhecimento especializado, confiabilidade pública e independência da governança política do Estado. Por exemplo, na Georgia e na Flórida, existem as Comissões de Qualificações Judiciais (CQJ), as quais são responsáveis por investigar, processar e propor, administrativamente, punições aos Juízes por eventuais condutas sociais antiéticas às Cortes Supremas Estaduais. Também com base na Constituição Estadual, as agências podem exercer poderes quase-judiciais na solução de certos conflitos.
No Brasil, o surgimento das agências, com o invólucro legal de autarquias especiais, aconteceu tarde e ainda é um instrumento muito subutilizado, especialmente, em função dos direitos dos consumidores.
A Agência Nacional de Aviação Civil, com incumbência de regular a infraestrutura aeronáutica civil, foi a de gestação legislativa mais complicada e a sua criação, na prática, um verdadeiro aborto, já que ainda havia muita discussão no Congresso sobre o seu escopo regulatório e, sobretudo, sobre as regras de concessão de transporte aéreo regular e não-regular. Porém, a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), uma agência da ONU (Organização das Nações Unidas), aumentou a pressão sobre o governo federal brasileiro e, assim, em seu primeiro mandato, muitíssimo a contragosto, o Presidente Lula concretizou, em 2005, o projeto da agência nacional de aviação civil, concebida pelo seu antecessor e rival Fernando Henrique Cardoso.
Legalmente, a ANAC é incumbida da regulação do transporte aéreo regular de passageiros, o mais significativo modal da infraestrutura aeronáutica civil e aeroportuária a seu cargo. Recentemente, a agência tornou pública a sua preocupação com o crescente problema enfrentado por transportadores aéreos e administradores aeroportuários com o mau comportamento dos consumidores. Certamente, a disciplina dos usuários do sistema de aviação civil passa pelo crivo da agência que, assim, segundo o portal do G1, estuda uma resolução disciplinar específica:
“Anac propõe aplicar punição maior a passageiros indisciplinados; quem tumultua pode ficar impedido de voar por um ano. Proposta de resolução deve passar por audiência pública antes de ir à votação; se aprovada, pode entrar em vigor em 2026. Brasil teve mais de 3 mil ‘passageiros-problema’ desde 2019″
G1
Impossibilidade de Ato Administrativo Restringir Direito Constitucional ao Transporte Público
A questão da indisciplina do usuário do transporte aéreo público regular de passageiros passa por dois crivos, o judicial e o administrativo; aquele, depende da provocação do interessado, seja o transportador aéreo, seja a agência reguladora, seja até mesmo outro usuário prejudicado pela conduta do indisciplinado, por exemplo, que provoca atrasos e perda de compromissos. A propósito, causou estupefação a conduta de uma Advogada, no Aeroporto de Confins, agredindo funcionários aeroviários.
A existência de uma resolução administrativa da agência, estabelecendo o devido processo legal para punição de usuários, é de rigor; todavia, o ponto em questão é que a resolução não pode ir além, administrativamente, da punição patrimonial com imposição de multas e cobranças de despesas, o que, aliás, é mais que suficiente para educar usuários, desde que eficientemente implementada. Sanções que ultrapassam a esfera patrimonial devem ser buscadas judicialmente através do Ministério Público ou, dependendo da situação, civilmente através da própria Procuradoria da ANAC.
Banir usuários do transporte aéreo administrativamente é rematada inconstitucionalidade, de modo que não deveria a ANAC se expor ao desprestígio, nem perder o seu tempo, com uma proposta de resolução natimorta à luz do direito.
Experiência da Agência Norte-Americana, FAA
Em transporte aéreo ou não, indisciplina humana não é privilégio de brasileiro.
O quadro acima revela que, apenas em 2023, o Federal Aviation Administration, congênere da ANAC nos Estados Unidos, recebeu 2.075 reportes de indisciplina de passageiros, abriu investigação em 512 casos, os quais julgou e está executando 402 deles, tendo aplicado US$ 7.5 milhões em multas.
No quadro acima (fonte Statista), verifica-se que, no mesmo ano (2023), houve o transporte aéreo total de 862.8 milhões de passageiros (voos domésticos e internacionais) nos Estados Unidos.
O percentual de passageiros voados (862.8 milhões) versus passageiros reportados (2.075) tem um resultado estatístico de 0,0002404!
De acordo com a reportagem analisada, em 2023, houve 735 reportes de indisciplina de passageiros no país; naquele mesmo ano de 2023, a ANAC informa que o Brasil transportou 112.6 milhões de passageiros, cujo resultado é (passageiros voados versus passageiros reportados) de 0,0006527.
Mensagem publicitária da ANAC sobre passageiros indisciplinados
A comparação dos números revela que o Brasil transporta 7,66 menos que os Estados Unidos, mas tem 2,71 mais problemas com passageiros indisciplinados.
“O que se verifica, então, é que a questão da impunidade, no Brasil, é o ponto em debate, não o acirramento de uma punição. Ou seja, o problema é que se pune pouco (ou quase não se pune), e não que se pune brandamente! Ou em outro giro de palavra, a ANAC precisa “trabalhar” mais, não propor punições administrativas mais pesadas e, sobretudo, de ilegallidade tão clara quanto a luz do dia”
Acirramento da Punição do FAA nos Estados Unidos
Não é errado aproveitarmos as boas experiências alheias. Pelo contrário. Para desestimular os atos de indisciplina dos passageiros em território norte-americano, a agência FAA, em parceria com a agência TSA (responsável pela segurança nos transportes contra atos ilícitos dolosos), estabeleceu que o passageiro administrativamente condenado por multa também perde o benefício de embarque privilegiado pelo sistema TSA chamado TSA Pre-Check, destinado a passageiros que oferecem “baixo risco” à segurança e que, por isso, são agraciados com facilidades que asseguram maior rapidez nos processos de checagem de segurança em aeroportos, por exemplo.
Plano de Fundo: A Velha Política Fiscal
Nada obstante, não se pode imputar à ANAC qualquer responsabilidade por sua ineficácia regulatória na área da indisciplina de passageiros (ou de qualquer outra). O quadro abaixo é uma nota recente (7/6/2024) emitida pelas agências reguladoras federais.
Certamente, os lucros que essas agências produzem são pelo Governo Federal auferidos e acabam sendo indevidamente utilizados em outros setores, muitas vezes, nada úteis aos consumidores destinatários das infraestruturas reguladas.
“Então, pelo que já anotou, a indisciplina dos usuários de transporte aéreo no Brasil é alta e a solução não é uma resolução para banimento de usuários do sistema de aviação civil, a menos que a resolução tenha outro objetivo, o de tentar equalizar o número de passageiros transportados com o número de agentes disponíveis para fiscalizá-los. Se for esse o objetivo da resolução imaginado pela diretoria da ANAC, continua ela sendo ilegal, mas ao menos é uma boa solução para redução de seu déficit.“