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- Introdução
- Justiça Internacional e Jurisdição Universal
- Estatuto de Roma e Jurisdição Universal
- O Tribunal Internacional Penal tem Jurisdição Internacional, não Jurisdição Universal
- Legislação Humanitária Internacional (sentido amplo) de que o Brasil é signatário
- Os Crimes Internacionais do Estatuto de Roma
- Projeto de Lei nº 4.038 de 2008 e a Lei de Genocídio (Lei Federal nº 2.889/1956)
- Fundamento Constitucional
- Desconexão Legal da Investigação Federal do Brasil em face de soldado Yuval Vagdani
- Extraterritorialidade do Artigo 7º, Código Penal Brasileiro
- Posição (Correta) do Governo Brasileiro sobre Jurisdição Universal no Direito Pátrio na ONU
- Conclusão: Ilegalidade da Investigação Determinada pela Justiça Federal Brasileira contra o Soldado Israelense
Introdução
O mundo nunca esteve tão polarizado. Geopoliticamente, as forças se dividem entre Leste e Oeste; já na política interna dos Estados, extremam-se “direita” e “esquerda”. Porém, nem todos os eventos são causados por aquele sectarismo. A investigação do soldado Yuval Vagdani tem fundamento jurídico em uma equivocada interpretação judicial do Direito, com nítidos efeitos políticos internos (no Brasil) e externos (no cenário internacional, notadamente, na relação diplomática do Brasil com Israel e seus aliados). Todavia, é equivocado se considerar a investigação como congruente com o governo “de esquerda” (de Lula) ou incoerente com a política “de direita”, ainda identificada com Jair Bolsonaro.
Em uma palavra, o caráter jurídico e, portanto, apolítico da investigação do soldado israelense se ampara na indevida aplicação da doutrina da Justiça Universal, a qual tem sido posta em prática por várias legislações, por exemplo, na França, que tem lei específica para isso, o que não acontece no Brasil, até porque a França é imperalista, foi colonizadora e figura no cenário mundial como disputante de poder internacional, inclusive, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, o que nao é o caso do Brasil.
Justiça Internacional e Jurisdição Universal
A relevância jurídica (e os importantes efeitos políticos internacionais) da jurisdição universal tem me levado a escrever sobre o tema: Justiça Universal e a Prisão de Assad e Universal Jurisdiction and International Jurisdiction (o texto está em Inglês, mas o site tem tradutor do Google).
A jurisdição universal é uma forma de extensão de jurisdição doméstica extendida a questões criminais relevantes de outros países, justificada por princípios humanitários. Trata-se de um instituto de direito internacional ainda em fase de laboratório, embrionário, razão pela qual não tem fundamento ainda em direito internacional consuetudinário.
Confude-se muito justiça internacional com justiça universal. A justiça internacional tem fundamento em resolução do Conselho de Segurança da ONU ou em convenções intergovernamentais. Sua jurisdição é delimitada por seu instrumento constitutivo. Por exemplo, o Corte Internacional de Justiça da ONU ou o Tribunal Internacional do Mar da Convenção UNCLOS. O que se pode dizer de mais específico e invariavelmente determinado sobre a Justiça Internacional é que ela é um órgão intergovernamental.
A jurisdição universal é uma forma de jurisdição super extraterritorial das Justiças domésticas dos Estados, não uma atribuição dos órgãos de Justiça Internacional.
O pedido de investigação em face do soldado israelense Yuval Vagdani, em visita a turismo no Brasil, a propósito, é absolutamente semelhante ao pedido de investigação francesa em face da visita do príncipe Saudita Mohammed bin Salman, quando de sua visita à França, em 28 de Julho de 2022. São investigações desejadas com base em jurisdição universal, o que, repita-se, nada tem de justiça internacional, tecnicamente.
Por trás desses pedidos de investigação, há sim um sectarismo que o Brasil deve evitar, mantendo-se como um país neutro, pronto para entrar em cena como mediador, como arbitrador, tal qual sempre foi. Não andou bem a Justiça Federal brasileira nesse episódio. Nem deve o Presidente da República tecer comentários de um lado ou do outro do problema. Afora em nada ajudar, aumenta o desgaste no mundo, que precisa de mais mediação e menos posições laterais.
Estatuto de Roma e Jurisdição Universal
O Estatuto de Roma é o instrumento constitutivo do Tribunal Internacional Penal; ao mesmo tempo, criou o sistema de cooperação penal obrigatório dos Estados membros do Estatuto com as decisões do TIP, além de outras obrigações acessórias de implementação de legislação para punição, pelos Estados aderentes, dos crimes estabelecidos no Estatuto de Roma, os chamados crimes “de grande preocupação internacional”.
O Estatuto de Roma não criou uma jurisdição universal para o TIP, muito menos para os Estados aderentes. Ou seja, o Estatuto de Roma não autoriza os Estados membros a processar e julgar crimes praticados fora de seu território. O que o Estatuto de Roma criou foi a cooperaçao penal dos Estados membros com as decisões do TIP. O Estatuto não criou a obrigação de cooperação entre os Estados aderentes, o que dependeria de convenções bilaterais ou multilaterais específicas.
Consequentemente, um Estado aderente do Estatuto não pode se dizer um Estado que está autorizado a processar crimes fora de seu território por força daquela adesão, nem considerar que são crimes no seu sistema legal penal os crimes definidos no Estatuto, sem que tenha o Estado lei doméstica tipificando aqueles crimes.
O Estatuto de Roma cria a obrigação de cooperação com o TIP e outras obrigações de engajamento com os princípios de punição dos graves crimes internacionais, mas não autoriza um Estado aderente agir no território de outro aderente, e muito menos de um Estado não-aderente.
Vale lembrar que o Tribunal Internacional Penal ordenou a prisão do Presidente russo Putin e do Primeiro-Ministro israelense Netanyahu, e exige, por intermédio do seu sistema de cooperação obrigatório de sua Parte 9, que os seus Estados membros cumpram aquelas ordens de prisão. Sugiro ler Monitoramento de Controle de Cooperação do Tribunal Internacional Penal. Nesse post, analisamos o sistema de monitoramento da cooperação penal internacional.
O Estatuto de Roma criou figuras típicas penais (crimes de guerra, crimes de agressão, crimes contra a humanidade, entre outros), portanto, que não integram os ordenamentos jurídicos pela adesão e internalização do Estatuto, automaticamente. A adoção do Estatuto cria a obrigação dos Estados implementarem aqueles crimes, os mecanismos de sua persecução, o que depende de leis específicas. Não existem tais leis no Brasil.
Por isso, não existe o menor cabimento invocar o Estatuto de Roma para justificar a legalidade de investigação de um crime por força da jurisdição universal. O Estatuto de Roma, que foi adotado na legislação do Brasil, criou para o Brasil apenas a obrigação de cooperar com o Tribunal Internacional Penal e, assim mesmo, “em termos”, depende.
O Tribunal Internacional Penal tem Jurisdição Internacional, não Jurisdição Universal
Como o Tribunal Internacional Penal tem jurisdição para julgar indivíduos por graves crimes internacionais e determinar o cumprimento de suas ordens nos territórios dos Estados membros do Estatuto de Roma, cria-se uma “miragem” de “jurisdição universal”. Porém, a jurisdição é internacional com execução por cooperação das Justiças domésticas.
A jurisdição do TIP é internacional porque é exercida por um órgão intergovernamental, que não pertence a nenhum Estado em particular, mas que foi criado pela vontade coletiva dos Estados aderentes do Estatuto. E não tem jurisdição universal exatamente porque é um orgão internacional que operacionaliza suas decisões com base em cooperação. O Brasil e demais países signatários do Estatuto de Roma se tornaram peças de colaboração com um órgão de Justiça Internacional. O pressuposto da jurisdição universal é que ela seja exercida por um órgão judicial doméstico de um Estado, cuja lei lhe permite punir, no seu território, um estrangeiro que pratica um crime em qualquer parte do mundo.
Ora, o que a Justiça Federal de Brasília fez foi um equívoco.
Com base no Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário, entendeu a Justiça Federal brasileira que, automaticamente, o Decreto nº 4.388/2002, que internalizou o Estatuto de Roma, dava lhe dando “jurisdição universal”, de modo que, então, poderia investigar o soldado israelense à luz da Lei do Genocídio, a Lei Federal nº 2.889/56. Porém, faltou uma “terceira lei”, justamente, a que atribuiria à Justiça brasileira a extraterritorialidadae extrema, a qual se denomina, na seara do direito internacional, de justiça univesal.
Legislação Humanitária Internacional (sentido amplo) de que o Brasil é signatário
No plano do Direito Internacional, o Brasil é engajado na política humanitária, pois é signatário dos seguintes documentos legais com viés humanista (sentido amplo, incluindo o direito humanitário, que não se confunde com direitos humanos): AT – Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes; CAT-OP Protocolo Opcional da Convenção contra Tortura; CCPR – Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; CCPR-OP2-DP – Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos com vista à abolição da pena de morte; CED – Convenção para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados; CED, Art.32 – Procedimento de comunicação interestadual no âmbito da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado; CEDAW – Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; CERD – Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; CESCR – Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; CMW – Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de Sua Família. Famílias; CDC – Convenção sobre os Direitos da Criança; CRC-OP-AC – Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Participação de Crianças em Conflitos Armados; CRC-OP-SC – Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a venda de prostituição infantil e pornografia infantil; CDPD – Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio; IV Convenções de Genebra de 1949 (desde 29/06/1957); Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949 relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais (desde 05/05/1992); Declaração de reconhecimento da competência da Comissão Internacional de Apuramento de Fatos prevista no artigo 90.º do AP 1 (desde 23/11/1993); Protocolo Adicional às Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais, de 8 de junho de 1977 (desde 05/05/1992); Protocolo Adicional às Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, relativo à Adoção de um Emblema Distintivo Adicional (desde 28/08/2009); Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Participação de Crianças em Conflitos Armados (desde 08/03/2004); Convenção da Haia para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (desde 12/09/1958); Protocolo da Haia para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (desde 12/09/1958); Segundo Protocolo à Convenção da Haia de 1954 para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (23.09.2005); Convenção sobre a Proibição do Uso Militar ou Hostil de Técnicas de Modificação do Ambiente (desde 12/10/1984); Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (desde 20/06/2002); Protocolo para a Proibição do Uso de Gases Asfixiantes, Venenosos ou Outros e de Métodos Bacteriológicos de Guerra, Genebra (desde 28/08/1970); Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção e Armazenamento de Armas Bacteriológicas (Biológicas) e Toxínicas e sobre a sua Destruição (desde 27/02/1973); Convenção sobre a Proibição ou Restrição do Uso de Certas Armas Convencionais Que Podem Ser Consideradas Excessivamente Lesivas ou de Efeitos Indiscriminados (com os Protocolos n.º 1, li e ili) (desde 03/10/1995); Protocolo IV sobre Armas Laser Cegantes da Convenção de 1980 (desde 04/10/1999); Protocolo relativo à Proibição ou Restrição do Uso de Minas, Armadilhas e Outros Dispositivos, alterado em 3 de Maio de 1996 (desde 04/10/1999); Protocolo V à Convenção de 1980 sobre Armas e Explosiva Remanescentes de Guerra (desde 30/11/201O); Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção, Armazenamento e Uso de Armas Químicas e sobre sua Destruição (desde 13/03/1996); Convenção sobre a Proibição da Utilização, Armazenagem, Produção e Transferência de Minas Antipessoal e sobre a sua Destruição (desde 30/04/1999) e Tratado para a Proibição de Armas Nucleares na América Latina e no Caribe – Tratado de Tlatelolco (desde 29/01/1968).
Os Crimes Internacionais do Estatuto de Roma
Não existe uma convenção internacional sobre prevenção e punição de crimes contra a humanidade, a qual se encontra em estudos na ONU.
O Estatuto de Roma, contudo, estabelece quatro crimes internacionais: GENOCÍDIO, CRIMES CONTRA A HUMANIDADE, CRIME DE GUERRA e CRIME de AGRESSÃO. Porém, repare bem, a definção desses crimes pelos Estados membros (inclusive pelo Brasil) é válida somente para o Tribunal Internacional Penal. Vale dizer, o Tribunal Internacional Penal julgar uma pessoa, por exemplo, no território de um Estado por um crime de seu Estatuto e exigir que essa pessoa, por cooperação daquele Estado, seja presa e levada para o TIP. Contudo, um Estado aderente não pode, através de sua Justiça, sem prévia lei, considerar que aquelas definições estatutárias de crime são também válidas no seu território, muito menos pretender que sua Justiça pode punir um estrangeiro que, em alguma parte do mundo, praticou um fato definido como crime por aquele Estatuto.
A adesão do Brasil (e demais Estados) ao Estatuto de Roma torna obrigatório que tais Estados aderentes cooperem para que o Tribunal Penal Internal possa punir tais crimes, ao mesmo tempo em que determina que os Estados aderentes sejam pro-ativos na punição daqueles quatro crimes, dentro de seu território e sobre seus nacionais.
Aquelas definições de crimes internacionais, criadas pela Assembleia de Estados Membros (com base nos poderes do Estatuto de Roma), não se tornam fatos típicos na órbita da legislação doméstica dos Estados aderentes automaticamente. Tanto a obrigação de cooperar quanto a obrigação de definir na legislação doméstica e, consequentemente, punir aqueles crimes, ficam na dependência de criação da necessária legislação doméstica dos Estados.
Essa lógica não se aplicam raramente, por exemplo, no caso dos Países Baixos, onde a legislação internacional se converte em legislação doméstica automaticamente. Porém, esse mecanismo é excepcional.
No caso do Brasil, que não adotou a teoria do monismo, os documentos legais internacionais devem ser, formalmente, introduzidos no seu sistema por leis próprias. No caso, o Estatuto de Roma está, pelo o Decreto nº 4.388/2002, “genericamente” adotado.
Projeto de Lei nº 4.038 de 2008 e a Lei de Genocídio (Lei Federal nº 2.889/1956)
No Brasil, está tramitando o Projeto de Lei nº 4.038/2008, que “dispõe sobre o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional, institui normas processuais específicas, dispõe sobre a cooperação com o Tribunal Penal Internacional, e dá outras providências”.
Logo, afora os fatos típicos de genocídio que estão definidos pela Lei Federal nº 2.889/56, todos os demais crimes tipificados no Estatuto de Roma são atípicos no território brasileiro.
Fundamento Constitucional
A Constituição Federal ampara a inclusão da legislação de origem internacional no arcabouço jurídico doméstico, o que se verifica, exemplificativamente, pelos artigos 5º, LXXIX, § 3º e 109, V-A e XI, § 5º.
Desconexão Legal da Investigação Federal do Brasil em face de soldado Yuval Vagdani
Não existe, por isso, tecnicamente, conexão de direito entre a prisão determinada pelo Tribunal Internacional Penal sobre o Primeiro-Ministro israelense Netanyahu e investigação determinada pela Justiça Federal brasileira sobre o soldado Yuval Vagdani; o que existe é conexão de fatos, ou seja, os fatos são os mesmos e são aqueles da guerra na Faixa de Gaza.
(…) No que diz respeito aos crimes, a Câmara encontrou motivos razoáveis para acreditar que o Sr. Netanyahu, nascido em 21 de outubro de 1949, primeiro-ministro de Israel na época da conduta relevante, e o Sr. Gallant, nascido em 8 de novembro de 1958, ministro da Defesa de Israel na época da suposta conduta, são responsáveis criminais pelos seguintes crimes como coautores por terem cometido os atos em conjunto com outros: o crime de guerra da fome como método de guerra; e os crimes contra a humanidade de assassinato, perseguição e outros atos desumanos. (Primeira Câmara de Pré-Julgamento do Tribunal Penal Internacional)
Extraterritorialidade do Artigo 7º, Código Penal Brasileiro
Extraterritorialidade e jurisdição universal são semelhantes à medida que ambas promovem a dilação da jurisdição judicial de um Estado sobre fatos penais não praticados em seu território, nem por seus nacionais. Vale dizer, extraterritorialidade e jurisdição universal são extensões extraterritoriais. A diferença é que a jurisdição universal tem inspiração de direito internacional público e se constitui na mais extrema forma de jurisdição extraterritorial. Todavia, extraterritorialidade e jurisdição universal se distinguem à medida que elas têm fundamentos técnicos diferentes.
A extraterritorialidade se baseia na legislação do próprio Estado e depende de acordos internacionais de direito internacional penal privado, a jurisdição universal não, até porque ela só entra em ação quando o indivíduo estrangeiro se encontra no território do Estado que se arvora na jurisdição universal.
Quanto à extraterritorialidade por cooperação, podemos citar o caso de dois cidadãos russos que foram detidos pela polícia federal brasileira em águas internacionais, à bordo de uma embarcação de bandeira das Ilhas Virgens Britânicas, na posse de 4.304,10Kg de “maconha”.
A Justiça Federal brasileira teve jurisdição sobre os fatos, mesmo tendo acontecido o crime fora do Brasil, em águas internacionais, e ainda que praticados por estrangeiros (russos), porque o tráfico ilícito pelo mar é um crime que o Brasil se obrigou a reprimir, estando, portanto, atendido um pressuposto de extraterritorialidade (artigo 7º, inc. II, alínea “a”, Código Penal). Essa extraterritorialidade resulta da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, internalizada pelo Decreto nº 154/1991. Ainda, também restaram satisfeitas as demais condições cumulativas do § 2º, daquele mesmo artigo 7º. (Tribunal Regional Federal da 5ª Região TRF-5 – HABEAS CORPUS CRIMINAL: HC 0814281-14.2021.4.05.0000). Veja: United Nations Convention against Traffic in Narcotic Drugs and Psychotropic Substances, Vienna, 20 December 1988.
Se houvesse um acordo de cooperação entre o Brasil e o Hamas para a punição do genocídio, a investigação em testilha seria correta, com base na extraterritorialidade do artigo 7º, do Código Penal.
Posição (Correta) do Governo Brasileiro sobre Jurisdição Universal no Direito Pátrio na ONU
Como já afirmado em outros posts sobre Jurisdição Universal, um conceito mais seguro com limites mais precisos desse instituto de Justiça Universal é objeto de estudos no âmbito do Sexto Comitê (órgão subsidiário) da Assembleia Geral das Nações Unidas, que já produziu um trabalho sobre esse tema. Perante aquele Comitê, acertadamente, pronunciou-se a diplomacia brasileira nos seguintes termos (doc. abaixo):
No âmbito jurídico brasileiro, é necessária a promulgação de legislação nacional que possibilite o exercício da jurisdição universal ou para perseguir e julgar uma ação ou omissão, que é considerada crime no direito internacional. Não é possível, portanto, exercer jurisdição universal sobre um crime apenas sob o direito internacional consuetudinário, porque a falta de legislação específica resultaria em uma violação do princípio da legalidade. Além disso, em nenhuma hipótese o Brasil exerce sua jurisdição “in absentia”, quando o infrator não está em seu território.
Conclusão: Ilegalidade da Investigação Determinada pela Justiça Federal Brasileira contra o Soldado Israelense
Por qualquer ângulo que se examine a investigação federal, verifica-se ali um erro grave de interpretação cometido em um plantão judicial de fim de ano.
Como vimos, a investigação determinada pela Justiça Federal brasileira não tem conexão jurídica com a investigação que tramita no Tribunal Internacional Penal, no curso da qual foi determinada pela 1ª Câmara de Pré-Julgamento a prisão do Primeiro-Ministro Netanyahu.
Igualmente, não existe acordo de cooperação que permitisse aquela investigação.
Afora o genocídio, não existe na lei brasileira os crimes estabelecidos pela Assembleia Geral dos Estados que governa a instituição que abriga o Tribunal Penal Internacional.
A lei que estabelece o crime de genocídio (Lei Federal nº 2.889/1956) aplica-se no território nacional. Extraterriotorialmente, sua extensão dependeria do artigo 7º, do Código Penal. Porém, tal extraterritorialidade não se enquadra nos permissivos dos incisos I e II.
Quanto ao genocídio, o artigo 7º, inc. I, alínea d, não é aplicável, porque o soldado Yuval Vagdani não é brasileiro, tampouco eventual crime de genocídio foi cometido no território brasileiro.
Quanto ao inciso II, daquele mesmo artigo 7º, não existe entre o Brasil e a Autoridade Palestina um tratado ou convenção pelo qual o Brasil tenha se obrigado a reprimir, por exemplo, crimes de guerra ou genocídio.
Enfim, a própria aplicação da doutrina da Justiça Universal não pode ser feita pretorianamente, sem lei expressa definindo, inclusive, quais crimes e condições subjetivas são necessários para o exercício daquela modalidade de jurisdição excepcional.
Por exemplo, o Direito Francês pode ser apontado como um exemplo de legislação em que a aplicação da jurisdição universal depende de expresso permissivo do Código de Processo Penal francês.
A ordem de investigação, portanto, não é resultante de uma posição política do Governo brasileiro, mas de uma decisão judicial equivocada.
A experiência quanto à visita do ex-Presidente do Sudão, Al-Bashir, à África do Sul, entre 13 e 15 de Junho de 2015, é uma evidência de que a Justiça dos Estados tem autonomia para intepretar a legislação internacional, à luz de seu próprio direito doméstico, independentemente do posicionamento político do Governo representado pelo Poder Executivo. No caso aqui citado, o governo da África do Sul era contrário à prisão daquele presidente solicitada pelo Tribunal Internacional Penal. Porém, não foi aquele entendimento do North Gauteng High Court of South Africa. (Southern Africa Litigation Centre v. Minister of Justice 2015).
Assim, a noticiada investigação do soldado Yuval Vagdani, em conexão com suas atividades na guerra entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, nenhuma relação tem com o Governo federal do Brasil, e sim é fruto de uma interpretação jurídica inapropriada do Judiciário Federal, em pleno plantão de fim de ano.
De qualquer maneira, é certo que a equivocada decisão judicial trouxe impactos na diplomacia Brasil-Israel e alimentou narrativas políticas oportunistas.
Referências e Fontes:
1. https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/TreatyBodyExternal/treaty.aspx, consultado em 06/01/2024.
2. Missão Brasileira para as Nações Unidas.
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