“A Justiça com Coração”

“A equidade da qual aqui estamos a tratar não é como fonte de direito de lege ferenda, mas como interpretação da lex lata mesmo”

O caso da criança brasileira raptada em Portugal

Introdução

Em sua obra sobre as “Riquezas da Terra”, JURI SEMJONOW reproduz uma história, a qual é bem adequada para ilustrar como poderá ser diferente o produto da lei, em face de sua aplicação com EQUIDADE.
Trata-se da narrativa de um acontecimento que foi contado por um jornalista russo em Odessa, tal qual ele ouviu de um peregrino recém-chegado de Meca…


«Governava, outrora, em Bagdá, um jovem Califa cujo nome já mergulhou no esquecimento, mas cuja sabedoria ainda vive até hoje na memória da posteridade. Seu Grão-Vizir que, como todos os velhos, tinha a preocupação dominante da pureza aos hábitos e aos bons costumes, foi responsável por um decreto que estabelecia rígidas regras ao vestir feminino.»

«Certo dia, a polícia deteve uma jovem mulher cujo “toilette” contrariava totalmente todos os castros padrões da lei. Levada ao Tribunal, a gravidade do caso despertou a atenção do Monarca que resolveu, ele mesmo, assumir a condução do julgamento. Após se inteirar do caso, ensimesmou-se por um instante; então, emergiu de sua meditação e questionou:

_ O que diz a lei que deve ser feito?

Ao que respondeu o Grão-Vizir prontamente:

_ A mulher deve ser apedrejada!

Em seguida, afirmou o Grão-Kadi:

_ A mulher deve ser apedrejada!

Por fim, confirmou o ministro de segurança, já com a voz um pouco mais baixa:

_ A mulher deve ser apedrejada!

Alteando a voz, replicou o Califa:

_ Que seja a lei cumprida!

Então, o Califa tirou um enorme diamante que ornava seu turbante e jogou-o ao corpo da mulher; a pedra, penetrando numa abertura dos véus que encobriam o colo da jovem, deslizou por seu corpo até cair delicadamente aos seus pés. Como a lei deveria ser cumprida, assim procedeu também o Grão-Vizir, jogando um monstruoso rubi que, percorrendo suavemente as pernas da mulher, foi deitar-se aos seus pés junto ao diamante. Em seguida, foi a vez do Grão-Kadi jogar-lhe uma safira; do ministro de segurança, que lhe arremessou sua esmeralda e, então, todos os da assistência do julgamento no Tribunal passaram a jogar suas pequenas pedras de esmeraldas, rubis, safiras, em uma chuva rutila.

A lei fora cumprida e o processo arquivado.»

O relato revela que, para além da honestidade e conhecimento da lei, uma qualidade essencial inerente a qualquer bom julgador é a sua sabedoria na aplicação da lei que, em termos técnicos, traduz-se pela equidade, que nada mais é que um bom senso, o qual encontra solução nas próprias fórmulas legais, não sendo necessário, portanto, ao julgador, para ser equânime, desviar-se da lei estrita.

Por isso, a não ser em uma expressão mais poeticamente coloquial, não concordo que seja a equidade a “Justiça com o Coração”; ela é dos neurônios mesmo, quando bem calibrados.

A equidade de que estamos a tratar aqui não é a fonte do direito, mas o método de interpretação do direito.

Sendo, tanto no Brasil como em Portugal, incontáveis os casos judiciais, também se verifica elevado o número de julgamento sem equidade, o qual lembra um óleo sobre tela trágico mas douradamente emoldurado.  

Das situações de julgamentos iníquos, sobreleva a negação da jurisdição, isto é, quando o Juiz decide que o caso não é pertinente à Justiça.

Trazido pela mãe brasileira a Portugal. Raptado pelo pai português

Ora, no caso do menino brasileiro (10 anos) que, trazido pela mãe a Portugal em Dezembro para estar com o genitor durante as férias de fim de ano, mas que não é devolvido pelo pai, que alega haver um não-declarado “risco à integridade da criança” em retornar com a mãe para o país onde tem vivido, configura, como julgou o Tribunal Viana, um rapto internacional de criança conforme art. 3º, da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças. Todavia, declinar da jurisdição da corte portuguesa que não teria competência internacional para o caso é uma interpretação duvidosa, tanto do direito doméstico português quanto do direito internacional privado.

No direito doméstico português, a competência territorial para conhecer e julgar processos de interesse de menores é do tribunal de família e de menores da comarca onde a criança reside (art. 155º, da Lei de Organização Tutelar de MenoresDL nº 314/78, de 27/10). Ora, a criança em questão reside no Brasil, no Rio de Janeiro. Então, perguntar-se-a: O Tribunal de Viana do Castelo tem competência para   decidir sobre a responsabilidade parental relativa àquela criança brasileira? A resposta é óbvio: Não existe essa competência, à luz do contido no Decreto nº 52/2008, de 13 de Novembro, Art. 5º, que prescreve (1): “1 – As autoridades jurídicas ou administrativas do Estado Contratante no qual a criança tem a sua residência habitual possuem competência para tomar as medidas necessárias à protecção da pessoa ou bens da criança.”

Acontece que o fato da criança brasileira não tem essa simplicidade franciscana. O fato que demandou a mãe da criança, Srª Érika Hecksher, ao Tribunal da Comarca de Viana do Castelo foi o “rapto”, assim  considerada a indevida inversão da posse precária da criança em posse definitiva pelo Sr. Rui Fonseca. Esse fato aconteceu em Portugal, em Ponte de Lima. Consequentemente, a pretensão de um provimento jurisdicional sobre aquele ponto específico dos acontecimentos firma a competência territorial da corte portuguesa, e ainda que se considerasse que persiste na situação um aspecto de internacionalidade, justifica-se a competência internacional adquela corte portuguesa pelo Artigo 62.º (Cód. Proc. Civil Português, Lei n.º 41/2013), a qual, ao cuidar dos fatores de atribuição da competência internacional, enuncia que “os tribunais portugueses são internacionalmente competentes”: (…) “b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram“.

A propósito,  calha dizer que o Supremo Tribunal de Justiça português (em parte, equivalente ao STF do Brasil), já aceitou (1457/20.9T8STR.E1.S1, 7ª Sessão, Manuel Capelo) que “(…) Os fatores previstos nas várias alíneas do artigo 62º do C.P.C. são autónomos (e não cumulativos), funcionando cada um em completa independência relativamente aos outros, sendo de per si bastantes para desencadear a atribuição da competência aos tribunais portugueses.“.

No caso da criança, filho de dez anos de Srª Érika Hecksher, ao Tribunal da Comarca de Viana do Castelo foi pretendido, como fato essencial, aquela “inversão de posse”, que também é o facto que serve de causa de pedir e que foi o facto praticado em Portugal (cautelarmente, a declaração de sua ilegalidade e, consequentemente, imediata restituição da criança a quem tem a posse-guarda permanente dela) da ação proposta.

Não se deslembra-se que o critério da al. b) do art. 62 do CPC é o da causalidade. Causalidade, aliás, laureada pela urgência urgentíssima, porque enquanto o Sr. Rui Fonseca está “em casa”, fazendo política de bom gosto duvidoso, a Srª Érika Hecksher está a um Oceano Atlântico de casa, com a Polícia à porta da casa dele, com uma mensagem da criança dizendo que “está a sofrer” ali dentro! Mesmo que o pai tivesse motivos concretos, verdadeiros e graves para não deixar a criança retornar ao Brasil, é criminosa a atitute de isolar a criança da mãe.

Ainda que alguma dúvida houvesse da competência internacional do Juízo de Família da Comarca de Viana do Castelo, a urgência da situação da criança e sua genitora, que de boa-fé viaja com ela do Brasil ao Porto, é patente, fato notório que o corte de Viana do Castelo deveria ter observado, à luz do Artigo 349º, CC. Então, seria o caso de se aplicar o Artigo 11.º, do Decreto nº 52/2008, de 13 de Novembro, o qual diz que: 1 – Em todos os casos de urgência, as autoridades de um Estado Contratante, em cujo território se encontra a criança, ou os bens que lhe pertencem, têm competência para tomar as medidas de protecção necessárias.”

Relevante refletir também que o Supremo Tribunal de Justiça (866/15.0PELSB.L1-5) considera que 

De uma forma mais actual, considera-se hoje em dia, que protege “o direito ao exercício sem entraves ilícitos dos conteúdos ínsitos às responsabilidades parentais e, de modo reflexo, o interesse do próprio menor no adimplemento de uma decisão que, nos termos da lei, surge – ou deve surgir – como aquela que melhor acautela esses interesses.

Ainda que a retenção indevida não seja, enquanto um FATO ISOLADO, um crime de subtração de menor, a qual, de acordo com a alínea c), do Artigo 249º, do  Decreto-Lei nº 48/95 de 15 de Março, depende da ocorrência “repetida e injustificada, trata-se sim de um fato ilícito, tanto é que se torno típico penal quando repetido, sendo de todo ilógico pensar-se que é um ato lícito, enquanto ato isolado.

Conclusão

A interpretação jurídica dos fatos da retenção indevida e, data vênia, covarde da criança pelo Tribunal de Viana do Castelo é uma negação de jurisdição, resultante de uma aplicação de lei sem considerar a teleologia das próprias convenções imbricadas com o direito doméstico.

Quando um jurista pensa que a criança está trancada – contra a sua própria vontade na casa do pai, em Ponte de Lima – com a mãe ao portão, sem ter contato com ela por proibição do conhecido Sr. Rui Fonseca, sendo que a criança foi para ali trazida pela boa-fé da própria mãe, e que a Justiça responde à Srª Érika Hecksher para ela procurar a autoridade central portuguesa para que  essa peça uma solução para a autoridade central brasileira, que contatará a Justiça do Rio de Janeiro, o jurista pensará que o julgamento faltou com a iniquidade devida; uma pessoa qualquer sem conhecimento de direito, no entanto, certamente, perguntar-se-á para que serve a Justiça.

Related Posts

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *